As vozes do dono

Recorrer aos serviços privados neste tempo de pandemia, sim, mas nos termos e condições definidos pelas autoridades públicas.

Em curso o processo de aprovação do Orçamento do Estado para o próximo ano de 2021. Não se estranha a longa fila de candidatos a um lugar “à mesa do orçamento”. A pandemia fornece argumento fácil para os clientes da fatia da saúde, pelo que tem crescido de forma bem visível a quantidade de elementos do coro que reclama o acesso dos hospitais privados ao bolo orçamental, a par da justa reivindicação de umas migalhas para o sector social. Novidades são o novíssimo hospital de Alcântara a precisar de rendimento rápido, a participação no coro dos administradores hospitalares, revertendo posição de décadas de suporte ao SNS e o aparente envolvimento presidencial, concedendo palco mediático a vários coristas.

O caminho parece pois aplanado, não faltando felizes coincidências como a decisão do Governo em promover o alargamento da ADSE a novos beneficiários, quando se sabe que aquela organização viu, este ano, reduzida a sua despesa em cerca de 50M€, o que significa que os prestadores viram reduzida a sua receita em idêntico montante, por falta de procura (ou por falta de oferta na fase mais séria da pandemia) ou as insuspeitas vozes de bastonários a reclamarem financiamento público para o envolvimento dos sectores privado e social no esforço de atendimento a doentes não COVID.

Mas, a decisão política de abertura generalizada aos serviços privados foi tomada logo em início de abril, quando se criaram as condições para as autónomas administrações procederem à contratação da prestação de cuidados por unidades privadas. Na verdade, perante o aumento da procura, a generalidade dos hospitais públicos tem adquirido serviços a entidades privadas. Este processo tem respeitado o princípio que o sector privado é complementar ao SNS, devendo ser utilizado em caso de insuficiência do serviço público, respeitando o sacrifício que os portugueses fazem ao encaminhar para a saúde, como acontece no ano corrente, cerca de 20 mil milhões €, valor superior a 10% da riqueza gerada, dos quais cerca de 13 mil milhões através de impostos cobrados. Pela campanha em curso, percebe-se que há quem queira mais, quem considere que não basta. Querem provavelmente livre acesso às unidades privadas com financiamento pelo OE sem a barreira da referência pelo SNS. Infelizmente, já se entregou de bandeja o argumento que, apenas em Belém, o poder político ouve os agentes do sector.

O possível retrato da situação mostraria um SNS, tal como a generalidade dos sistemas de saúde europeus, sob fortíssima pressão por força da pandemia, tentando resistir e sobreviver para fazer jus à sua qualificação de maior conquista da democracia, e um bando de abutres sobrevoando à espera de conseguir abocanhar um pedaço ainda suculento.

Recorrer aos serviços privados neste tempo de pandemia, sim, mas nos termos e condições definidos pelas autoridades públicas. Face à torrente comunicacional da campanha em curso, duvida-se que tal ainda seja possível, mais provável a captura do interesse público por interesses privados. Este é também um tempo de luta e de resistência. Permitir a delapidação do Serviço Nacional de Saúde seria tão trágico como a própria pandemia.

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