“Presentes”: o grito da comunidade africana do Porto a lutar contra a invisibilidade

Fotojornalista José Sérgio compôs um “retrato colectivo” de uma comunidade em crescimento no Porto: os africanos e afrodescendentes. Imagens contra a invisibilidade e pelo festejo de uma cidade não exclusivamente branca. Exposição está no MIRA Fórum, no Porto, até 23 de Dezembro

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José Sérgio

Quando José Sérgio trocou Lisboa pelo Porto, pensava estar a sair de uma urbe onde a presença africana e afrodescendente era grande para morar numa “cidade branca”. Mas o quotidiano de morador não demorou a mostrar-lhe que estava “errado”: a comunidade era significativa e parecia até estar em crescimento. Essa descoberta conduziu o fotojornalista moçambicano a uma pergunta: por que razão esta percepção de o Porto ser uma cidade com poucos negros é tão generalizada? A exposição Presentes! Africanos e Afrodescendentes no Porto, que apresenta este sábado (16h) no Mira Fórum, no Porto, é de alguma forma a sua resposta-acção a esse questionamento: são 40 retratos para “tornar mais visível esta comunidade”. Como se gritasse a sua presença.

A vontade de trabalhar a temática - também nascida da “experiência pessoal de ser africano no Porto” - andava a borbulhar na sua cabeça há algum tempo. De uma forma “mais metafórica e simbólica” tinha feito uma aproximação ao tema, em 2019, com a exposição A Viagem que Guerra Junqueiro nunca fez, onde explorava a relação entre o poeta do Realismo português e Moçambique. A intuição de ter “campo para explorar” medrou por essa altura. 

Os planos do fotojornalista freelancer incluíam o esboço de um retrato com dados estatísticos e sociológicos. Mas a primeira barreira surgiu aí, depois de meses de contactos com várias instituições: “Não encontrei nada.” Nesta altura, a pandemia de covid-19 já estava instalada em Portugal e várias portas haviam sido fechadas, o que lhe dificultava a missão. Mas o trabalho não podia confinar-se – e José Sérgio fez-se ao caminho. Literalmente.

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Em deambulações pela cidade, numa “aproximação mais intuitiva”, foi construindo um mosaico heterogéneo de africanos e afrodescendentes, elegendo uma abordagem sem pressas, que envolveu vários encontros com cada retratado e muita conversa. “Sabia que não queria fazer um vox pop e um retrato simples”, conta. Enquanto o diálogo se desenrolava, ia percebendo um ponto comum: “O orgulho em serem portuenses, a adoração pela cidade e a forma como foram recebidos.”

Essa “positividade”, também “espelho” da forma de estar na vida de José Sérgio, é carimbo das suas fotografias. “Foi intencional fazer essas imagens com orgulho. Desafiava-os para construirmos um retrato juntos”, conta. Sem influenciar a postura de cada um, levava-os a reflectir como gostariam de aparecer se fossem enviar um “postal” deles mesmos para a família ou amigos.

À fotografia, juntou um questionário, gravado em vídeo, que integra também a exposição que fica até 23 de Dezembro nas galerias de Campanhã e que faz parte do MIP – Mês da Imagem do Porto. Interessava-lhe explorar o conceito de casa – para quem não nasceu em Portugal, o Porto já tinha ocupado esse lugar ou era ainda a segunda geografia? –, perceber diferenças geracionais, conhecer os agregados familiares e as profissões dominantes.

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Sem dados estatísticos, a ideia de explorar lugares, circuitos, rotinas e rituais dos africanos e afrodescendentes no Porto foi um pouco sacrificada. Mas algo deu para compreender: “Existem alguns lugares e pequenos rituais desta comunidade. O que não me parece haver, na constatação de algumas perguntas do meu inquérito, é uma união geral dos africanos”, afirma, diagnosticando, ainda assim, uma “vontade enorme de maior união entre todas estas pequenas ilhas”. Resta saber como encontrar esse “chapéu”.

O trabalho documental de José Sérgio, um “retrato colectivo” que é uma pequena amostra dos “afroportuenses”, revelou uma enorme diversidade: gente nascida em Portugal ou no país há muitos anos, moradores recentes, estudantes, cabeleireiros, trabalhadores na área da restauração. “O Porto já é uma cidade multicultural e estas vidas fazem parte disso”, sublinha o moçambicano nascido em 1970 e a viver em Portugal há mais de 20 anos (mas há apenas dois no Porto). O que talvez falte, diz, é “consciencializar as pessoas para essa presença ou torná-la mais visível.”

José Sérgio não gosta de confundir essa necessidade de maior representação com quotas (“Temos de ser reconhecidos por aquilo que fazemos e não por favor”, argumenta) e preferiu deixar perguntas sobre racismo de fora do seu questionário. Não por o assunto não ser urgente (“É um facto inegável que existe racismo em Portugal. Só quem não vê a actualidade o pode negar”), mas por procurar um outro ângulo. Também ele com punho erguido numa luta contra o silêncio e transparência. O próprio título escolhido para a exposição é consequência disso: “À luz das mais recentes manifestações que foram acontecendo na cidade, com o movimento Black Lives Matter, achei que a ideia de gritar presente era adequada.”

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