Eutanásia: Debate com omissões

Será que o debate sobre o dilema ético tão fracturante está a ser suficientemente esclarecedor? Não, infelizmente!

Em pleno agravamento da crise pandémica de covid-19, a Assembleia da República reuniu-se para debater um dos temas éticos mais fracturantes do fim de vida, a eutanásia.

Na sua discussão posicionaram-se, de imediato, dois campos diametralmente opostos. Não obstante alguns argumentos, muitos deles legítimos, a discussão pecou, ab initio, por estar fundamentada em conceitos equívocos e omitir outras alternativas, que não a eutanásia, para aliviar o sofrimento e a angústia inerentes a muitas situações do fim da vida.

Em termos médicos, a eutanásia define-se como o acto de pôr fim à vida, intencionalmente, de modo a aliviar a dor e o sofrimento. Por princípio, o doente padece de uma doença incurável, aliada a uma dor não mitigável e solicita, de um modo persistente, que o médico ou outra pessoa ponha um fim ao seu sofrimento.

Nesta definição, mais abrangente, existem premissas que não foram cabalmente esclarecidas e induziram a conclusões erróneas, a saber:

  • Como vimos, a eutanásia é um acto intencional, como tal um procedimento activo. Não há eutanásia “passiva”. Esta expressão tem sido utlizada, em alguns casos, para definir uma postura médica que tenta evitar a obstinação terapêutica. Evitar a distanásia ou obstinação terapêutica é um acto de leges artes.
  • Na actualidade, a farmacopeia apresenta soluções para evitar a dor. A eventualidade do duplo efeito e a eventual depressão do centro respiratório não pode nem deve ser considerada como eutanásia passiva. O intuito da prescrição faz parte integrante do acto médico, desde a antiguidade médica greco-romana.
  • A sedação terminal, por vezes considerada como um acto de eutanásia, é um procedimento de sedar o doente em grande sofrimento com uma dose mínima eficaz que o induzirá a perder as suas capacidades cognitivas, preservando as funções orgânicas, até a morte ocorrer como resultado da doença primária, mantendo a restante medicação paliativa. O medicamento prescrito tem semivida biológica curta. Se, por qualquer motivo, a medicação é suspensa, o doente recupera a sua consciência. Portanto, este não é um procedimento irreversível. Esta prática poderá ser considerada como eutanásia?  Considerar sedação terminal como um acto de eutanásia, só se for por má fé.
  • Pode um doente, com insuficiência respiratória crónica, ser obrigado a uma traqueostomia e ligado a um ventilador, de uma forma irreversível, contra a sua vontade?Na minha opinião, não! Ninguém pode obrigar um doente a viver com uma prótese, tal como não o pode obrigar a um transplante de um órgão. Se o doente estiver totalmente esclarecido e for persistente no seu pedido de ser desligado do ventilador, o seu desejo deve ser tido em conta. Ao pedir para ser desligado, está a manifestar a vontade de não estar ligado à prótese, não está a pedir a eutanásia, apesar de ter a plena consciência que o desligar do ventilador será a sua morte.
  • Por último, o testamento vital que permite ao doente crónico em final de vida que nenhum tratamento ou procedimento diagnóstico seja realizado contra a sua vontade, evitando assim eventuais situações de pedidos de eutanásia, foi suficientemente divulgado?

Será que o debate sobre o dilema ético tão fracturante está a ser suficientemente esclarecedor? Não, infelizmente!

O autor, médico pneumologista e intensivista, é autor do livro Testamento Vital Nos dilemas éticos do fim da vida, publicado pela Guerra e Paz, Editores, S.A.

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