A irresponsabilidade do Sindicato Independente dos Médicos

O SIM está a tratar os seus associados como meninos pequeninos que não pensam pela sua cabeça ou que se enganam com rebuçados.

No sítio da Internet do SIM – Sindicato Independente dos Médicos, que o PÚBLICO noticia, é proposto aos associados, como forma de protesto pelas condições que qualificam de quase ou já mesmo burnout, que entreguem aos superiores hierárquicos uma declaração da qual consta, com interesse para a minha análise, o seguinte: “(…) visto que se prognostica, neste quadro, a produção, involuntária embora, de sérios danos, eventualmente muito graves, na saúde e na vida dos doentes postos a cargo desta instituição, gerados pelo acentuado acréscimo da probabilidade do cometimento de erro clínico (…) O presente protesto visa, portanto, que a responsabilidade do/a signatário/a se considere excluída, transmitindo-se as consequências da respectiva conformação para os órgãos e pessoas suas titulares, de quem emanou a determinação a prestação de trabalho nos preditos moldes, bem como para os demais superiores hierárquicos envolvidos na respectiva prolação, transmissão e execução.”

Não duvido minimamente que todos os profissionais de saúde se encontrem assoberbados com trabalho devido à pandemia, que não estejam a ser cumpridas as normas relativas aos horários de trabalho e que, legitimamente, esses profissionais se sintam mal pagos para os perigos que enfrentam (sobretudo os enfermeiros e os auxiliares) e objecto de pouca consideração do Governo, bastando atentar nas declarações do PM, mesmo que em “off”, a que me referi em artigo de 25/8/2020 (“covardes”), por comparação com uma patusca e labrega entronização de todos quantos trouxeram a final da Champions para Portugal.

No entanto, é inadmissível a atitude deste sindicato e juridicamente aberrante. Analisado o problema de uma perspectiva apenas jurídico-penal, não é esta declaração – ou qualquer outra do género – que isenta os profissionais de saúde de eventual responsabilidade criminal. Trata-se de uma ideia peregrina: como se fosse possível que, de modo geral e abstracto, alguém se pudesse eximir a futuros comportamentos, porque alegam – com razão – que não têm as condições para exercer de modo adequado as suas funções.

O tema levanta complexos problemas de estado de necessidade, de conflito de deveres e da responsabilidade criminal no seio do trabalho de equipa, que aqui só podem ser esboçados. Sabido é que, se um profissional de saúde se vir na contingência de só ter meios para acorrer a um doente e existam mais a reclamar essa atenção, a sua conduta não constituirá crime se tratar ao menos um deles, seja por não ser ilícita ou culposa, dependendo da circunstância concreta. Por outro lado, o Direito Penal não pode nunca exigir de um ser humano aquilo que ele ou ela não está, naquele preciso momento, em condições de dar: se um médico está em horário contínuo para além do legalmente previsto, deve sim informar a hierarquia e é-lhe totalmente lícito afastar-se do local de trabalho. E isto porque existe a figura da negligência na aceitação, ou seja, se um profissional de saúde vem dizer que, por desatenção, por descuido, provocado pelo cansaço, cometeu um erro, de acordo com as leges artis, não se lhe pode censurar a conduta naquele específico momento, por não estar em condições de “dar mais”, mas deveria ter deixado de trabalhar a partir da altura em que sentiu que já não estava com as capacidades habituais para o exercício do seu quadro funcional. Por outro lado, mesmo que isto aconteça – e o profissional continue a laborar –, sempre se poderá considerar excluída a sua culpa se se provar que, apesar da sua negligência na aceitação, ele ou ela só continuou a trabalhar por não haver outra pessoa para o/a substituir. E mesmo que assim se não entenda, em termos de determinação da medida concreta da pena, isso importará uma diminuição sensível da imagem global do facto, que poderá conduzir a uma atenuação especial da pena.

Donde, aquilo que os profissionais devem fazer para evitar o “erro médico” é, através dos seus sindicatos e das Ordens (cada um nas suas específicas atribuições), demonstrar ao Ministério da Saúde a desadequação dos meios materiais e humanos disponíveis, em face das projecções que se antevêem para as próximas semanas. Sendo este facto conhecido e muito claro, o/a profissional, por si e pelos doentes, deve limitar-se ao cumprimento estrito do seu horário e apenas dele. Só desta forma, sendo necessário, o Governo terá de pôr em marcha um urgente plano de contingência, ao que parece com alguma previsão na proposta do Orçamento do Estado, mas que só quem está no terreno pode apreciar se é ou não suficiente.

O que se não pode é pretender que um documento como o recomendado pelo SIM isente os profissionais de saúde de eventual responsabilidade criminal, o que, na prática, implica também, em meu parecer, que esteja a tratar os seus associados como meninos pequeninos que não pensam pela sua cabeça ou que se enganam com rebuçados. Este rebuçado, na aparência doce, pode trazer muitos amargos de boca.

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