Bolívia: o desafio da democracia

O povo boliviano, fortemente afetado pela crise da covid-19, não deve, em hipótese alguma, reviver os trágicos acontecimentos de novembro de 2019. Está em jogo a responsabilidade de todos os atores políticos mas também da comunidade internacional.

Desde a renúncia forçada de Evo Morales em 10 de novembro de 2019, após uma eleição polêmica, a Bolívia tem sido governada por um governo não eleito, que chegou ao poder com o apoio dos principais partidos políticos da oposição, em circunstâncias no mínimo confusas. A ruptura resultante da sucessão constitucional levou ao poder uma Presidente interina, Jeanine Áñez, cuja missão era convocar novas eleições dentro de um prazo de três meses. Elas finalmente acontecerão em 18 de outubro de 2020.

Depois de ter inaugurado seu governo com perseguições a dirigentes do Movimiento al Socialismo (MAS) e seus apoiadores, rebaixados à categoria de “hordas” e acusados de “terrorismo”, com ameaças a uma imprensa nacional e internacional qualificada como “sediciosa” e uma repressão que deixou pelo menos 33 mortos e centenas de feridos, a Presidente interina foi certamente muito além da sua missão. Além da retirada da ALBA e da UNASUL, da substituição sistemática de seus embaixadores ou, mais recentemente, da promoção de militares por decreto, o governo de transição tomou, sem o respaldo do voto do povo boliviano, uma série de decisões que preocupam os defensores da democracia em todo o mundo.

Abusos e restrições à liberdade

Se o retorno de ex-exilados, acusados ​​pelo governo de Morales de participação em organizações terroristas ou extorsão de fundos públicos, foi saudado pelo governo Áñez como um sinal de retorno à “normalidade”, hoje, várias centenas de ex-líderes do MAS e de organizações sociais estão sendo processados ​​sem reação de parte daqueles que, no outono, se mobilizaram em nome da democracia. Vários relatórios internacionais denunciaram os abusos do governo Áñez, incluindo o da Human Rights Watch, que menciona “um ataque político contra Morales e seus partidários” e aponta para “restrições à liberdade de expressão e uso excessivo e arbitrário da prisão preventiva”.

As revelações de contas falsas no Facebook difundem propaganda governamental, as nomeações polêmicas para chefiar empresas estatais nacionais, a liberalização das exportações agrícolas e o decreto que autoriza o cultivo de novas espécies de OGM em benefício do agronegócio na rica região de Santa Cruz, baluarte da oposição ao MAS, são todos elementos que devem alertar para a crise democrática que a Bolívia atravessa.

Em junho passado, o governo interino se aventurou a doar terras estatais ao setor agroexportador e, sob o falso pretexto de combater a covid-19, a realizar uma transferência de 600 milhões de dólares de fundos públicos para saldar dívidas de grandes empresas privadas de Santa Cruz (dentre os seus principais beneficiários, encontrava-se o novo ministro Branko Marinkovic). O desejo de reorientar as políticas públicas a favor das grandes empresas privadas incluía a autorização de aumento das taxas de juros bancárias, a redução da alíquota de impostos das grandes empresas e a tentativa de privatizar a empresa pública de distribuição de energia elétrica de Cochabamba (ELFEC).

Além do escândalo da compra de respiradores superfaturados e inutilizáveis ​para hospitais, que levou à prisão do ministro da Saúde, os empréstimos feitos ao Estado boliviano para fazer frente à crise sanitária, inclusive o de 327 milhões dólares acertado com o FMI sem a aprovação da assembleia, ilustram o estado de corrupção generalizada no país: pelo menos 20 casos de corrupção e irregularidades afetaram ministros ou pessoas próximas ao governo Áñez. Sob o pretexto de “economizar” e redirecionar o orçamento para o setor sanitário, o executivo fechou suas embaixadas no Irão e na Nicarágua no início de junho. Na mesma linha, os ministérios da Cultura, do Desporto e da Comunicação foram colocados sob a supervisão de outros ministérios, com orçamentos e competências reduzidos. O vice-ministério da Descolonização, bem como os programas de televisão pública em idiomas ameríndios, foram abolidos. E é em nome da crise sanitária que o governo Áñez aspirava ainda adiar as eleições, finalmente marcadas para 18 de outubro de 2020.

Repressão e violência

A repressão continua sob o rígido controle de Arturo Murillo, ministro do Interior que parece ser, às vezes, quem governa o país. Em poucos meses elevou para 15 milhões de dólares os gastos do Estado boliviano com a importação de armas para equipar a força policial, ou seja, dezoito vezes mais que em 2019. Enquanto violências se repetem contra militantes do MAS, também se tenta impedir a candidatura de Luís Arce, do mesmo partido, considerado favorito segundo as pesquisas eleitorais. E os interesses comuns entre os poderosos agroindustriais autonomistas de Santa Cruz e o Brasil de Jair Bolsonaro deixam dúvidas sobre as intenções do “bloco democrático” boliviano de querer assegurar o respeito ao voto mais do que impedir o retorno do MAS ao poder. Dúvida reavivada pela recente intervenção da ministra boliviana Karen Longaric perante a Comissão de Relações Exteriores do Parlamento Europeu, fortemente criticada pela grande maioria dos grupos parlamentares.

Como mostra a experiência pessoal de Lula no Brasil, na América do Sul tornou-se lugar-comum recorrer a manobras políticas para armar tentativas de desestabilização eleitoral ou judicial para inibir candidatos inconvenientes. A acusação de fraude eleitoral que precipitou a saída de Evo Morales em novembro passado foi amplamente baseada em um relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA), hoje questionado por vários estudos difundidos enormemente pela imprensa internacional. Um processo semelhante parece ser usado pelo governo interino atual, que aponta à ameaça de uma futura fraude.

Certas instâncias internacionais, em particular a OEA e a União Europeia, que não hesitaram, em 2019, em convocar um segundo turno eleitoral, atualmente demonstram uma neutralidade intrigante. O resultado pacífico desta eleição só pode ser garantido se todos os cidadãos bolivianos, residentes na Bolívia ou em outros lugares, tiverem acesso irrestrito e transparente a este voto decisivo, e se seus resultados forem respeitados por todos os candidatos.

Num contexto de significativa violência cometida durante a campanha eleitoral, principalmente contra o MAS, é imprescindível aumentar a vigilância sobre as condições em que se realizarão estas eleições extremamente polarizadas. O povo boliviano, fortemente afetado pela crise da covid-19, não deve, em hipótese alguma, reviver os trágicos acontecimentos de novembro de 2019 e deve ser capaz de encontrar uma saída democrática para esse conflito e essa polarização da sociedade. Está em jogo a responsabilidade de todos os atores políticos bolivianos, mas também da comunidade internacional.

Marcos Colón (Florida State University), Victor Audubert (Univ. Sorbonne Paris Nord, IDPS), Olivier Compagnon (Univ. Sorbonne Nouvelle, CREDA), Hervé Do Alto (Univ. Côte d’Azur, ERMES), Élise Gadea (Univ. Sorbonne Nouvelle, CREDA/IFEA), Pablo Laguna (Univ. Sorbonne Nouvelle, CREDA), Claude Le Gouill (Univ. Sorbonne Nouvelle, CREDA), Françoise Martinez (Univ. Paris 8, LER), Baptiste Mongis (Univ. Sorbonne Nouvelle, CREDA), Franck Poupeau (CNRS, CREDA)

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