Covid-19 deixou as crises do Chile e da Bolívia em suspenso, mas não as enterrou

A pandemia obrigou ao adiamento de votações decisivas nos dois países sul-americanos, que no ano passado foram palco de fortes convulsões políticas, sem que haja novas soluções.

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Jeanine Añez ainda não avançou qualquer data para as eleições presidenciais Reuters/CARLOS GARCIA RAWLINS
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Detenção de manifestante em Santiago no Dia do Trabalhador,Detenção de manifestante em Buenos Aires no Dia do Trabalhador Reuters/IVAN ALVARADO,Reuters/IVAN ALVARADO

Em todo o mundo foram adiadas centenas de eleições por causa da pandemia, mas poucas teriam um impacto tão decisivo no futuro dos seus países como o referendo constitucional chileno e as eleições presidenciais bolivianas, após o afastamento do poder de Evo Morales. A nova doença deixou em suspenso estas crises políticas - mas longe de estarem apaziguadas.

No Chile, o plebiscito que daria início a um processo de substituição da Constituição herdada da ditadura de Augusto Pinochet, e que representa a principal concessão do Governo de Sebastián ​Piñera para aliviar a tensão acumulada após meses de protestos violentos, estava marcado para 26 de Abril, mas foi adiado para Outubro. Só que o Presidente sugeriu que poderá ser adiado ainda outra vez, ampliando a desconfiança da sociedade face às instituições.

Em entrevista à CNN, Piñera disse que a recessão económica vai ser “tão grande” que “talvez se volte a discutir” a data do referendo, sobretudo se as condições sanitárias se agravarem. A oposição reagiu contra estas declarações, a juntarem-se ao descontentamento com os números do desemprego: 8,2% no primeiro trimestre deste ano.

O Governo está empenhado em reabrir a economia, mesmo pondo em causa a saúde da população. As autoridades sanitárias querem emitir “certificados” para que quem fez a quarentena após lhe ter sido diagnosticado a covid-19 possa regressar ao trabalho. Inicialmente, o Ministério da Saúde tinha dito que estes certificados garantiriam que as pessoas estavam imunes ao vírus durante “pelo menos três meses”. Mas, após críticas da Organização Mundial de Saúde, acabou por recuar, retirando qualquer referência à imunidade.

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Dos muitos cenários que se poderiam antecipar para a política chilena em 2020, provavelmente nenhum iria contemplar uma subida da popularidade do Presidente Piñera Lucas Jackson/REUTERS

Popularidade de Piñera

Apesar disto, dos muitos cenários que se poderiam antecipar para a política chilena em 2020, provavelmente nenhum iria contemplar uma subida da popularidade de Piñera, que se tornou no símbolo da repressão violenta contra os manifestantes nos protestos. Mas nos últimos dois meses, a taxa de aprovação do líder conservador passou de nove para 25%.

A mudança está relacionada com a resposta rápida e sólida dada pelo Governo assim que os primeiros casos de contágio foram detectados. As medidas de isolamento social foram postas em prática de imediato e até o Exército foi chamado para patrulhar as ruas de Santiago – ironicamente, os mesmos locais onde, semanas antes, os militares foram usados para reprimir violentamente as manifestações anti-governo. As autoridades sanitárias conseguiram começar a fazer testes à população rapidamente.

Para tentar suavizar os efeitos económicos da paralisação, o Governo anunciou um pacote de estímulos para a economia, altamente dependente da exportação de matérias-primas como o cobre, no valor de 11,75 mil milhões de dólares (10,8 mil milhões de euros).

O politólogo chileno Patricio Navia, em declarações ao Financial Times, compara a situação política no país a um casal prestes a divorciar-se. “É como se, de repente, um dos filhos tivesse cancro e eles tivessem de pôr de lado as suas diferenças”, explica.

Mas as tréguas no Chile são apenas aparentes e os motivos que levaram milhares de pessoas, sobretudo jovens, a protestar contra o Governo, como a profunda desigualdade económica, permanecem. “Não quer dizer que, assim que a crise terminar, as coisas voltem ao normal, pode aproximá-los, ou talvez eles continuem a odiar-se”, observa Navia.

É portanto expectável que os protestos em larga escala regressem, não só a Santiago, mas também ao resto da América Latina, onde o impacto económico da pandemia será amplamente sentido. O Banco Interamericano para o Desenvolvimento prevê uma queda do PIB da região entre 1,8% e 5,5% este ano, como consequência da paralisação económica, do aumento do desemprego e da dependência dos países sul-americanos das trocas comerciais com a China e os EUA.

“A estabilidade política será provavelmente a norma no curto prazo”, escreve na revista Americas Quarterly Oliver Stuenkel, especialista em relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, no Brasil. “Mas assim que a pandemia recuar, a crise económica deverá tornar mais difícil governar e, se a história pode servir de guia, levar a uma queda das taxas de aprovação, novos protestos maciços, e líderes em perigo de não terminarem os seus mandatos”, acrescenta.

Bolivianos desconfiados

Na Bolívia, as tréguas chilenas não se verificam e a crise parece continuar. As primeiras eleições presidenciais após a intervenção militar que depôs Evo Morales do cargo que ocupou por 13 anos, marcadas inicialmente para 3 de Maio, foram adiadas de forma indefinida, levando muitos a recear uma tentativa por parte da Presidente interina, Jeanine Añez, de permanecer no poder.

Esta semana, a Câmara dos Deputados aprovou um decreto que obriga a que as eleições sejam marcadas no prazo de 90 dias, ou seja, até 2 de Agosto. A disposição legal foi viabilizada pelos deputados do Movimento ao Socialismo (MAS), de Morales, mas pode abrir uma crise institucional com o Governo interino.

A ascensão de Añez despertou dúvidas logo de início. A política conservadora era uma ilustre desconhecida vice-presidente do Senado, e não a primeira na linha de sucessão. Mas no meio da indecisão que se seguiu ao afastamento surpreendente de Morales em Novembro do ano passado, foi ela quem assumiu o cargo. Depois de inicialmente ter afastado a hipótese de vir a ser candidata, Añez decidiu apresentar-se às eleições e é uma das favoritas a alcançar uma segunda volta.

Se a desconfiança em relação às intenções de Añez eram elevadas, a ausência de um horizonte para a realização das eleições aumentou-a ainda mais. “A pandemia começou em péssima hora para a Bolívia, porque estávamos nas vésperas de eleições em que um Governo legitimado pelos votos ia assumir”, diz o analista político Fernando Molina, citado pela Folha de São Paulo.

“Agora, Añez, ainda que tenha a sua base de apoio, continua a ser muito contestada por outra parte da sociedade, que a considera uma golpista”, afirma Molina, que prevê o regresso “em força” da “polarização” que marcou 2019.

Ao contrário do que acontece no Chile, a gestão da crise criada pela covid-19 pelo Governo interino boliviano não está a ser bem recebida. Añez decidiu enviar o Exército para patrulhar as ruas e aplicou multas pesadas, e até penas de prisão, a quem não respeite as ordens de isolamento social.

A dureza de algumas medidas levou a Human Rights Watch a acusar o Governo de estar a pôr em causa a liberdade de expressão. “O Governo boliviano aparentemente está a tirar vantagem da pandemia para dar a si mesmo o poder de punir qualquer um que publique informação que considere incorrecta”, disse o director da organização para as Américas, José Miguel Vivanco.

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