As mulheres ciganas, as feministas e a Internet

Se para algumas mulheres ainda é profundamente difícil libertarem-se, por exemplo de um marido agressor, para as mulheres ciganas, essa dificuldade mais do que duplica.

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"É urgente que capacitemos e empoderemos estas mulheres" Adriano Miranda/Arquivo

Era morena, com um cabelo muito escuro e brilhante e olhos enormes que faziam lembrar azeitonas. Saía do elevador e, no hospital, sentava-se numa das cadeiras destinadas às visitas. Raramente falava. Quando finalmente a deixavam entrar, quase sempre a menos de cinco minutos do fim, aproximava-se dele e dizia baixinho: “Tens de ficar bom, se te acontecer alguma coisa o teu irmão vai tirar-me os meninos.”

Um dia perguntei-lhe porquê. E ela respondeu que na cultura cigana era assim que funcionava. Com o marido gravemente doente, todas as decisões que lhe diziam respeito, a ela e aos filhos, eram tomadas pelo sogro e pelos dois cunhados. Depois confessou-me baixinho que desde que o marido tinha sido internado ainda não tinha ido a casa. O sogro exigia-lhe que permanecesse noite e dia à porta do hospital, onde os familiares lhe levavam comida e roupa. E as visitas eram também definidas por ele: se viessem outros familiares, mesmo que tivessem com o marido uma relação distante, ela não entraria ou entraria em último lugar. A filha menina nunca foi autorizada a ver o pai.

E sabem porque me lembrei disto? Porque acabei de assistir a uns vídeos, aparentemente virais na Internet, onde um marido cigano acusa a mulher de o ter abandonado e, por isso, queima publicamente as roupas dela enquanto a ofende. Depois a mulher faz um vídeo de resposta onde acusa o marido de a agredir e maltratar. E a partir daqui há uma sucessão de respostas com a própria mãe a renegá-la e com um filho a ameaçá-la fisicamente caso decida voltar para casa.

Não querendo analisar detalhadamente o caso, e porque para o que realmente interessa não importa encontrar “culpados”, o que se percebe é que a mulher cigana continua desprotegida numa cultura tendencialmente patriarcal. Se para algumas mulheres ainda é profundamente difícil libertarem-se, por exemplo de um marido agressor, para as mulheres ciganas, essa dificuldade mais que duplica.

É verdade que as coisas estão a mudar e que, lentamente, começamos a ver mulheres ciganas a chegarem à universidade e a criarem associações para a defesa dos seus direitos. Mas se olharmos para o Estudo Nacional das Comunidades Ciganas, realizado em Portugal em 2014, percebemos que 73,4% dos inquiridos concordam com a afirmação “as mulheres de vergonha [honradas] não devem frequentar determinados locais sem a presença do marido”; e que 64,4% concordam com a afirmação “os homens devem tomar as decisões familiares mais importantes”. A mulher, com um papel central no cuidado da casa e dos filhos, continua por isso a ser um elemento secundário em quase todos os outros campos.

Uma vez perguntei-lhe o que é que aconteceria se ele morresse. E ela respondeu-me que teria de rapar o cabelo, vestir-se de preto e passar um ano em casa dos pais. A filha seguiria com ela. Os dois filhos rapazes ficariam em casa do cunhado. E isto era o que mais a assustava, tirarem-lhe os dois meninos. Quando a incentivei a não permitir tal coisa, quando lhe disse que legalmente era ela a responsável por aquelas crianças, ela riu-se, encolheu os ombros e disse que eu nunca seria capaz de perceber. É provável que tenha razão.

Aquilo em que acredito é que é urgente que capacitemos e empoderemos estas mulheres. É possível que a cultura cigana continue a ser respeitada com mulheres com mais escolaridade, com mais conhecimento e com mais poder de decisão. Não se trata de querer que abandonem a sua cultura (até porque, ao contrário do que ouvimos habitualmente, a cultura cigana tem alguns valores, como o respeito pelos mais velhos e a ajuda mútua, que devem ser valorizados), trata-se de fazer com que percebam e façam perceber aos outros a sua importância. Como mulheres, como mães e como membros capazes e importantes na comunidade.

É altura de as organizações feministas olharem a sério para esta questão e ouvirem com atenção estas mulheres. Pela cigana dos olhos escuros que conheci no hospital, pela cigana cujos vídeos circulam na Internet e por todas as outras, sem rosto e sem voz, que de certeza têm muito para dizer.

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