Estamos atolados em corrupção?

Não proponho um olhar ingénuo. A corrupção no poder é um drama desde a Antiguidade Clássica. Mas a temporada eleitoral já começou e toda a calma é pouca.

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Os jornais foram inundados por artigos de opinião sobre corrupção. Só no PÚBLICO li sete nos últimos dez dias. Em regra, evito os temas da moda — para quê chover no molhado? —, mas hoje não resisto. Não tenho muito a oferecer. Na verdade, só tenho perguntas.

Paira no ar um cheiro a vergonha, a Portugal-ovelha negra, um caso perdido, uma gente que vai de mal a pior. A historiadora Fátima Bonifácio resumiu o problema assim: “Portugal é um país atolado em corrupção.”

“Atolado” é um coloquialismo com graça, que não será para levar à letra, pois seria um despropósito — ou populismo — descrever Portugal como um “terreno lamacento” ou país de “baixeza moral”, sinónimos propostos pelo dicionário.

Mesmo assim, fico a pensar: “atolado” significa o quê? Que todos os funcionários públicos — dos professores universitários ao Presidente da República — são corruptos? Que nada no Estado funciona sem corrupção? Que todos os detentores de cargos públicos trocam favores e dinheiro e vantagens uns com os outros? Que não podemos acreditar em nada nem em ninguém?

Sou de uma geração que já não põe dinheiro dentro da carta de condução quando a GNR nos manda parar. A quem passa hoje pela cabeça ir a uma Loja do Cidadão e enfiar 50 euros entre os papéis que dá ao funcionário?

Sabemos que durante anos foi assim. Contaram-nos e está descrito. No livro Correspondência diplomática irlandesa sobre Portugal, o Estado Novo e Salazar, 1941-1970, do historiador Filipe Ribeiro de Meneses, o primeiro encarregado de negócios irlandês em Lisboa, Colman O’Donovan, faz um retrato negro de Portugal: “Os funcionários públicos têm abertura para aceitar os subornos que o público se habituou a pagar. É enorme o número de acusações de irregularidades, que não estão limitadas aos empresários, mas incluem os funcionários públicos, muitos deles em posições elevadas, dos Grémios e outras organizações dos departamentos públicos.”

Com o amadurecimento da democracia, o pequeno suborno foi desaparecendo. As cunhas talvez não. No passado, chegavam por carta. Bastou-me folhear uns minutos Salazar e Caetano — Cartas Secretas (1932-1968), de José Freire Antunes, para encontrar Marcello Caetano a pedir ao primeiro-ministro que escolhesse “o meu amigo Dr. Carlos Lobo de Oliveira” para um lugar no Supremo Tribunal Administrativo. Hoje, imagino que as cunhas cheguem por WhatsApp.

Não estou a dizer que em Portugal não há corrupção ou que o problema é ligeiro. Há muita corrupção, a corrupção deve ser combatida e os especialistas não se cansam — e bem — de propor formas de reforçar a prevenção.

Coisa diferente é saber — medir — se a corrupção é a regra, se há mais do que nos países com os quais nos devemos comparar e se está a aumentar. Os dados são poucos e são subjectivos. É o primeiro problema: a maior parte do que sabemos sobre corrupção — além dos estrondosos casos mediáticos — baseia-se em percepções. O mais usado é o Índice de Percepção de Corrupção (IPC) da Transparência Internacional — calculado com base em inquéritos a peritos e empresários. Aí, Portugal está em 30.º lugar, com 62 pontos em 100. Abaixo de Portugal, há 160 países com auto-avaliações piores. Como comparam os 62 pontos? A Espanha tem os mesmos 62, a Itália tem 53 e a Grécia 48. Falo de países do sul europeu com os quais temos afinidades históricas e culturais. Num inquérito feito no projecto Variedades de Democracia na Europa do Sul, coordenado por Tiago Fernandes (ISCTE) e Staffan Lindberg (Universidade de Gotemburgo) e financiado pela FFMS, os dados mostram Portugal, França e Espanha com padrões de percepção de corrupção parecidos e sem picos vistosos ao longo dos últimos 30 anos (1990-2018).

No topo do ranking do IPC estão a Dinamarca, Nova Zelândia, Finlândia, Singapura, Suécia, Suíça, Noruega, Holanda, Alemanha e Luxemburgo. O Canadá está em 12.º e os EUA em 23.º. Dirão: as pessoas mentem para não prejudicar a reputação do seu país. Nesse caso, fica a dúvida: se não estranhamos a percepção que há nos países do topo, nem a percepção nos países do fundo da tabela — Líbia, Coreia do Norte, Afeganistão, Guiné Equatorial, Sudão, Venezuela, Iémen, Síria, Sudão do Sul e Somália — porque é que estranhamos a percepção dos países intermédios ou do início do pelotão?

A Procuradoria-Geral da República tem dados factuais: entre 2017 e 2018, ​houve 2517 inquéritos a crimes de corrupção e criminalidade conexa que chegaram ao fim, dos quais 1334 foram arquivados, 192 indiciados, dos quais 152 resultaram numa acusação (6%). Entre 2007 e 2017, passámos de 52 condenados por corrupção para 117 em 2017. Aumentou a corrupção ou o controlo? Não sei. Não proponho um olhar ingénuo. A corrupção no poder é um drama desde a Antiguidade Clássica. Mas é bom olhar para os dados. A temporada eleitoral já começou e toda a calma é pouca.

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