O meu filho morreu

Digam todos os dias aos vossos filhos que gostam deles! Ajudará, um pouco que seja, a aliviar a dor dilacerante da morte de um filho? Não, nada! Mas se o não tivesse dito constantemente, essa dor poderia ser bem pior!

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Aaron Burden

Um pedaço do melhor que havia em mim morreu subitamente, aos 19 anos.

Morreu o que era a seleção do melhor na nossa família, aperfeiçoada nestes “tempos de cólera”, em que nos redescobrimos e amámos verdadeiramente.

A dor é imensa e não cabe no peito – nenhum pai deveria sobreviver ao seu filho.

Ele era o nosso farol, o bastião e o fiel da balança. Um filho precioso muito querido e um irmão protetor, cúmplice e doce.

Descobri, ao ler e ouvir, pelas dezenas de amigos, que o Francisco era ainda melhor. Com os amigos, os carenciados e os sem-abrigo.

Foi uma vida plena de felicidade. Usou os dotes excecionais sempre para o Bem, enchendo-nos de orgulho ao entrar em Medicina (no “meu” ICBAS) apesar de, nas palavras da irmã mais velha, estudar apenas um total de 5 horas no secundário. Na música, teimosamente autodidata, com uma sensibilidade excelente. No desporto, na paixão do rugby, sempre na liderança da ajuda e no conselho aos amigos, embora, nas palavras dos colegas de equipa, conseguisse por vezes faltar a mais treinos do que aqueles que poderia haver, mas conseguindo mesmo assim ser selecionado para os jogos e até ser o melhor em campo. Nos grupos da paróquia e da Missão País, estando super-orgulhoso por ter sido convidado a ser chefe de Missão em 2021. A prescindir de tardes da sua juventude para dar explicações a crianças, nas noites passadas a distribuir comida aos sem-abrigo e até a apanhar lixo nas praias ao domingo de manhã.

Vida cheia e feliz, principalmente neste último ano por estar no curso da sua paixão e ter sido também recebido na tuna, seguindo sempre o seu percurso discretamente e sempre de forma independente. As últimas férias – em Serpa com o Rocky, descer o Guadiana de canoa, wakeboard no Alqueva, os karts e os sunsets na Praia da Falésia com os amigos – foram as melhores de sempre.

Descrito como o melhor amigo por tanta gente! Um verdadeiro sobredotado em inteligência emocional. Sempre a rir e de bom humor, assim surge em todas as fotografias que temos.

Parafraseando o meu amigo poeta JLBG, ele era como a água que se adaptava à forma das pessoas que molhava.

Há quem se liberte da lei da morte pela perenidade da sua arte. Enquanto Cirurgião Vascular vi, por vezes, familiares projetando a sobrevivência dos entes queridos no transplante de órgãos para salvar outras pessoas. Pelo que li nas mensagens partilhadas e nas conversas com os seus amigos, o Francisco vai manter-se vivo, porque a impregnação dele na personalidade dos que o rodeavam é tão grande, as mudanças e estabilizações de temperamento que provocou são tão marcadas, como se ele conseguisse introduzir “linhas de código” na alma daqueles com quem convivia.

Cheio de projetos de ajuda comunitária; trocaste a festa de 18 anos por uma viagem de solidariedade em África que tiveste de adiar por causa do Covid (e a Mãe aliviada com receio que falecesses por lá...).

Os filhos tomam quase sempre os nomes dos pais, mas eu é que passei a ser chamado de “Dr. Durão”, sem o ser, pois o apelido vem da mãe e dos padrinhos que escolhemos, ou “o pai do Durão”, e sentia orgulho nisso.

Chegaste um dia, em pequeno, com a notícia de que tinhas decidido ir para as ilhas Fiji para poder viver do rugby e do surf, mas, no fim do nono ano, disseste que tinhas optado por estudar medicina para poder ajudar os outros, mas logo seguido de doutoramento em bioengenharia para poder criar uma patente que pudesse ajudar muito mais gente ao mesmo tempo. E, com as tuas capacidades, indiscutivelmente conseguirias fazer isso. Concretizavas tudo o que pretendias com a tua paixão. Quando te dizia para largares a guitarra e ires estudar, para teres as notas necessárias para a Universidade, respondias: Alguma vez não cumpri? Mesmo que fosse no limiar, a verdade é que tinhas razão e continuaste a tocar. Fizeste mais nos teus 19 anos do que muitos na vida toda.

O teu cão, o Rocky, que pediste durante 12 anos seguidos nas cartas ao menino Jesus, não sai da porta de casa. Por onde andas, quando chegas? A casa agora é enorme com o vazio de ti. Quando chego ao fim do dia ainda te procuro, mas já não te ouço. Resta-me olhar para o mar e ver-te de manhã, à tarde e à noite. E cada nascer ou por do sol, cada tempestade, manhã de nevoeiro ou nortada serás tu.

Todos os dias sinto a tua falta, porque apesar de todas as memórias lindas que tenho, e dos terabytes de fotos e vídeos, há tantos projetos por realizar, tantos sonhos que não vão ser cumpridos. Não te vou ver ser Médico, não te vou ver casar, não vou ver os teus filhos e os teus sobrinhos não vão aprender contigo. Não vai haver mais lanches ajantarados contigo no inverno à lareira, nem sunsets no verão na varanda e não me vais acompanhar no fim da minha vida. Tínhamos combinado que, quando as pernas me falhassem, empurravas a minha cadeira de rodas como eu empurrei o teu carrinho em bebé. Estava a chegar o momento, como diz o Louis Armstrong no “Wonderfull World”, em que já tinhas aprendido mais do que eu sabia e já me reensinavas a guitarra que aprenderas comigo, o resto era uma questão de tempo.

“Morreu um poema...” diria Agostinho da Silva

Muito obrigado por todas as mensagens, todas as presenças e todos os abraços – limitados em tempos de pandemia, e que tanta falta fazem –, dos que vieram de longe e de perto, dos que não conseguiram vir, dos que disseram coisas lindas e dos que não conseguiram falar. É um reconforto diáfano saber que o meu filho era bem mais grandioso do que eu pensava e que está incrustado na personalidade de tanta gente, o que, nas suas palavras, é a grande prova da ressurreição de Cristo: a marca eterna que deixou pela sua mensagem, e não o Seu corpo ter ou não ressuscitado.

Alguém disse uma frase que eu repito muitas vezes aos meus doentes, mas também em casa: “Não te queixes de não ter sapatos, porque há quem não tenha pernas.” Mas… o que pode ser pior do que a morte de um filho?

Enquanto pais e irmãs, cá em casa, sempre contribuímos para a felicidade mútua. Todos os dias se diz que gostamos uns dos outros. À Mãe, em pequenino, abraçavas-te a ela à noite na cama e dizias (e a teimosa da Mãe às vezes ainda te obrigava a dizê-lo já em crescido): “Gosto muito de ti, desde o fim do universo lá de cima, até ao fundo do universo lá de baixo!” Numa mente precocemente científica aliada a um coração de ouro.

Digam todos os dias aos vossos filhos que gostam deles! Ajudará, um pouco que seja, a aliviar a dor dilacerante da morte de um filho? Não, nada! Mas, se o não tivesse dito constantemente, essa dor poderia ser bem pior!

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