O Facebook a quem o trabalha!

O documentário O Dilema das Redes Sociais mostra que os gigantes tecnológicos têm de estar sujeitos à supervisão pública. Redes mais democráticas precisam-se.

Um terror. Vicia, induz, manipula, vende, polariza, falsifica, desumaniza os indivíduos e enfraquece as democracias. É este o retrato do Facebook, e de outras redes sociais, e dos gigantes tecnológicos em geral, do Google à Amazon, exposto em O Dilema das Redes Sociais, o documentário da Netflix que tem deixado meio mundo à beira de um ataque de nervos. O facto de os testemunhos serem de ex-operadores dessas companhias intensificou o factor de veracidade de uma obra válida, embora quase nada do que é exposto seja novidade.

No início olhávamos para as redes como espaço privado. Depois, como semipúblico ou público. Fomos sendo embalados pela ideia de que éramos clientes de uma plataforma que nos prestava um serviço gratuito. Mas há muito que se percebeu que agimos no espaço comercial de companhias cujo modelo de negócio é olhar para os utilizadores, ou para os seus dados, como mero produto. Uma nova forma de capitalismo, como demonstrava Shoshana Zuboff em The Age of Surveillance Capitalism (2018), onde a experiência humana privada é matéria-prima gratuita e fonte inesgotável de receitas, com os nossos dados extraídos, empacotados e vendidos no mercado, ao serviço de práticas comerciais duvidosas, gerando enormes contradições nas democracias liberais.

Dito isto, importa distinguir - o que raramente acontece, diga-se - o que são ferramentas de comunicação de grande potencial, como as redes sociais, dos paradigmas e modelos de negócio providenciados por empresas onde os critérios comerciais não obedecem aos princípios do bem comum. E essa é que é verdadeiramente a questão. A solução não é abandonar as redes. É ter consciência do terreno parasitário que se pisa, por mais indolor que pareçam as acções desencadeadas. É perceber que, para além da exploração comercial, a economia digital pode desencadear inúmeros efeitos perversos. É responsabilizar governos nacionais ou organismos internacionais se não forem tomadas medidas no sentido da defesa dos cidadãos. E é imaginar redes mais democráticas.

Ao nível da União Europeia, finalmente, algumas condutas estão a ser questionadas, como revela a intenção, discutida esta semana, de obrigar as companhias que operam com dados europeus a guardá-los em servidores localizados em território da UE, tendo o Facebook reagido com tiques de monopolista, ameaçando sair da Europa. Esta disputa é importante, mas é apenas o preâmbulo de algo mais complexo. O Facebook, como os restantes gigantes tecnológicos, tem de estar sujeito a regras democráticas e à supervisão pública, em especial nestes tempos em que a digitalização da nossa existência parece irreversível, mas o que está em causa é mais vasto. Novos tipos de propriedade e controlo sobre bens públicos exigem novas leis. O problema é a incompatibilidade de um sistema em que uma pequena minoria controla os instrumentos que garantem os direitos fundamentais de 99% da população.

Desafiar essa hegemonia é necessário e existe quem o esteja a fazer. O regulamento de protecção de dados nunca teria existido sem o trabalho de activistas (o que está a acontecer agora na UE foi possível pela acção do jovem austríaco Max Schrems, que colocou o Facebook em tribunal), plataformas da sociedade civil e alguns partidos políticos. Corrigir práticas é essencial, mas o principal desafio é a própria estrutura de propriedade de companhias onde a actividade produtiva consiste na criação de valor sob a forma de dados. Os utilizadores não só perdem o controlo sobre o produto da sua actividade, como não recebem nenhuma forma de compensação pela mesma.

Pode ser difícil imaginar, hoje, o Google, Facebook ou Whatsapp, a transfigurarem-se em domínio público ou em cooperativas transnacionais, com os dados salvaguardados da vigilância corporativa ou estatal, e com algoritmos compostos pelos utilizadores, mas criar espaços com essas características não é impossível. Pode parecer fantasia, mas existe cada vez mais gente a tentar viabilizar plataformas onde os utilizadores podem votar por mudanças ou onde, por exemplo, os algoritmos duplicam os comentários baseados na preservação dos direitos individuais ou colectivos e outras realizações semelhantes, em vez de terem uma aplicação mercantil. Claro que a ordem dominante resiste a essas ideias. Ridiculariza-as até. A ideia é sempre reafirmar que não existem alternativas. Foi sempre assim quando se ousou conceber novas formas de propriedade colectiva. Mas como o documentário do Netflix mostra, a situação actual é um terror que apenas convém a alguns. Se queremos mudanças vamos ter de lutar por elas.

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