Agarrem-me que me demito!

Tal como rejeitaram um totalitarismo de esquerda comunista, os lusos hão-de deitar para o caixote do lixo da História o oportunismo que em nada se diferencia daqueles que critica e que, na verdade, se chegasse ao poder, criaria uma ainda maior rede de interesses que aquela que sempre existe em todos os Estados.

A candidatura a Presidente da República (PR) de alguém que tem vindo a expressar e a propor ideias e medidas legislativas inconstitucionais, típicas da extrema-direita, racistas, xenófobas e se não tecnicamente fascistas, ao menos próximas de regimes ditatoriais e autoritários, é uma forma de marcar a agenda política e de tomar o pulso aos eleitores para as legislativas. Partidos como este vivem da exposição pública e medram na polémica, negando uma dimensão institucional na política. “Movimentos iliberais” se têm designado, “populismos inorgânicos”. Os apoios falam por si: Salvini e Marine Le Pen e a tacanhez de pedinchar uma frase a Trump, que teima em chegar.

Ao avançar com muito tempo para as presidenciais, o candidato ganhou exposição pública, de que se alimenta e pretende fazer crer numa dinâmica de vitória. É também claro o objectivo de retirar a Marcelo o maior “score” eleitoral detido por Soares. Inteligente a jogada política, tanto mais que lhe permite erodir aqueles que, como o actual PR, bem têm chamado a atenção para os perigos comunitários da eleição de representantes destas ideias. Mais: sabemos, desde a reportagem da “Visão”, o que já se suspeitava – vários saudosos do passado e outros que estrategicamente vêem no candidato alguém que manobrável para alcançarem os favores do poder, estão a financiar as várias acções de “marketing” diário. Para um partido que se diz anti-sistema, comer à mesa com os do costume é de uma incoerência atroz, mas não se visa uma linha de decência, pois isso já tinha acontecido com promessas de abandonar cargos que só o foram após insuportável pressão mediática. “Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”, é pregão corriqueiro na estratégia deste partido, que comete um erro estratégico – acha que já quase tudo lhe é permitido. E aqui começa a descambar a estratégia, pois se o partido se quer afirmar como terceira força política nas legislativas, tem de ir buscar eleitorado moderado ao PSD e ao CDS, o que, assim, parece difícil.

A baralhar as contas das presidenciais surge Ana Gomes. Ninguém sabe ao certo, neste momento, se a sua aparição facilita ou dificulta a vida da extrema-direita. Por um lado, o candidato afirmou que se demitiria se obtivesse uma votação inferior à militante socialista, o que pode ser visto como um “boost” nas hostes de Gomes e um tiro no pé desventurado – alguns que ficariam em casa, só para não lhe dar o gosto, podem ir às urnas. Simplesmente, o BE repete Marisa Matias, sem dúvida o nome em melhores condições desta área política para a disputa. Mas, ambas entram no mesmo eleitorado, pelo que poderá ter sido inteligente colocar essa fasquia, por se contar com a divisão do voto à esquerda. Donde, diria que o risco da extrema-direita é calculado e visa dar prova de uma força que, na verdade, é fraquinha, tanto mais que o PCP vai lançar um qualquer camarada. E o PS? Neste momento, é o fiel da balança na luta contra as forças extremistas de direita, pois o seu silêncio ou um apoio envergonhado a Marcelo são a melhor notícia para todos os democratas, tanto mais que o PSD e o CDS nada mais têm a fazer que não seja declarar um pouco entusiasmado apoio a actual PR.

Indiscutível como é que o Professor se recandidata, bem faz em escolher o último momento possível para o anunciar, enquanto o tal partido anuncia eventuais medidas e tomadas de posição que um PR constitucionalmente não pode levar a cabo. Bem o sabem, mas assim lançam a confusão e a crença num ideal inexistente, para além de um endeusamento do líder.

As contas, para sermos honestos, far-se-ão entre o resultado eleitoral desse senhor e as candidaturas de Ana Gomes, Marisa Matias e do camarada comunista. Se o primeiro representa a extrema-direita, esta mesma diz que os demais são de extrema-esquerda, pelo que se é este o campeonato, não sei como as contas se poderão fazer de outra forma.

Marcelo ganhará para o bem da nossa democracia e do Estado de Direito e é natural que não atinja a marca de Soares. Porém, isso em nada desmerecerá a sua vitória, pois os tempos são muito diferentes e os partidos mais à esquerda não poderiam deixar de apresentar candidatos. Felizmente, ainda não estamos no tempo em que, como sucedeu em França, foi essencial que todos os democratas de direita e de esquerda se unissem para travar Marine Le Pen. Esse é o sonho do tal senhor, mas acredito no bom-senso, equilíbrio e inteligência dos Portugueses, antes que seja necessária uma cerca sanitária para defender os alicerces básicos da dignidade da pessoa e de um Estado minimamente decente.

Tal como rejeitaram um totalitarismo de esquerda comunista, os lusos hão-de deitar para o caixote do lixo da História o oportunismo que em nada se diferencia daqueles que critica e que, na verdade, se chegasse ao poder, criaria uma ainda maior rede de interesses que aquela que sempre existe em todos os Estados.

Ah! E o tal senhor disse que se demitiria da presidência do partido. Não disse que não se recandidataria, como o fez há pouco tempo. Estes truques de magia de feira de segunda começam a ser demasiado óbvios e os eleitores são inteligentes. Subestimar os outros sempre foi meio caminho andado para a derrota.

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