Zero identifica nove “erros estratégicos” no plano “positivo” de recuperação de Costa Silva

Ambientalistas dizem que o plano é positivo, mas tem muito para corrigir. Falta-lhe apontar uma “transformação sistémica”, essencial para o futuro.

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A persistência da aposta no turismo de massas é uma das críticas apontadas pela Zero ao documento Paulo Pimenta

A “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”, desenvolvida por António Costa Silva a pedido do Governo, é um documento “positivo”, mas com muitas medidas propostas a precisarem de um claro reforço e algumas a terem mesmo de mudar. É esta a análise da associação ambientalista Zero ao documento que esteve em discussão pública até à passada sexta-feira. O principal pecado atribuído a este plano é o facto de continuar a assentar no modelo económico tradicional, não avançando para a “transformação sistémica” que a Zero considera essencial.

No parecer com que contribuiu para a discussão pública, a associação recorreu às cores dos semáforos para avaliar cada uma das propostas referidas no documento. O resultado foi a atribuição de luz verde a 36 medidas, laranja a 41 delas e um marcado vermelho a nove outras, que considera “erros estratégicos que poderão atrasar o caminho de Portugal rumo à sustentabilidade”.

É esse sinal vermelho que recebe, por exemplo, a proposta sobre a rede de infra-estruturas de transportes e mobilidade no sector marítimo-portuário, por a Zero considerar que não é acompanhada “de qualquer referencial de sustentabilidade” e por não compreender o porquê de se propor a construção de um terminal portuário de minérios para exportação em Sines, sem ter em conta o investimento em portos mais a Norte, “que estarão mais próximo das alegadas áreas potenciais de exploração”, em concreto, do lítio. No eixo relacionado com a rede de infra-estruturas, os ambientalistas também consideram um erro assumir-se que é necessário construir-se uma barragem no rio Ocreza, para regularizar o caudal do Tejo, sem que haja qualquer referência à renegociação da Convenção de Albufeira, e critica várias propostas relacionadas com as redes de energia, apresentando “sérias dúvidas” sobre a viabilidade económica da construção de um gasoduto.

O outro sinal vermelho do documento é mostrado na área dedicada à reindustrialização do país, em concreto na parte que se refere à valorização da biomassa florestal residual. “A promoção de mais centrais de biomassa e refinarias para gaseificação e pirólise é um passo rumo ao incremento de utilização insustentável da floresta portuguesa”, considera a Zero, realçando que não há uma “verdadeira avaliação” do potencial dos resíduos florestais passíveis de valorização energética, nem sequer regulamentação que defina “o que é biomassa residual florestal”.

Também o plano de investimento para valorizar os recursos minerais estratégicos continentais (lítio, nióbio, tântalo e terras raras) merece a reprovação dos ambientalistas, que exigem que uma medida dessas seja acompanhada de uma Avaliação Ambiental Estratégica, para que seja possível “avaliar correctamente a possibilidade de uma exploração sustentável, tendo em consideração as componentes ambientais, sociais e económicas, nas diferentes áreas do território”.

Quando o que está em causa é a exploração mineira no mar — o que também está previsto no plano de recuperação —, a Zero manifesta uma oposição ainda mais veemente. “Toda a exploração mineira, sobretudo em ambiente marinho e em profundidade, implica problemas ambientais graves, em particular, perda de biodiversidade e deve ser apenas o último recurso”, defende a associação.

Os dois últimos sinais vermelhos da Zero vão para o plano de investimento direccionado para o interior, a economia local e o espaço do hinterland ibérico — uma proposta que considera ter “aspectos positivos”, mas que tem muitas lacunas, desde logo por não colocar “os critérios de interesse público e de coesão territorial acima de critérios de mera racionalidade financeira” — e a proposta que prevê a criação de programas de atracção turística. Apesar de o turismo ser um sector crucial para a economia nacional, a associação considera que “manter a dependência em relação ao transporte aéreo e insistir na recuperação do turismo de massas são formas de promover Portugal como um destino turístico insustentável”.

Ferrovia e bicicletas

Apesar das críticas ao documento desenhado por António Costa Silva, a Zero considera que ele é “positivo” e dá luz verde a várias das medidas propostas, como o investimento na ferrovia, os programas de qualificação de adultos e de apoio social a estudantes em todos os graus de ensino, os planos de transição digital, o reforço de investimento no sector da saúde ou o plano de investimento para a reorientação da cadeias logísticas e de abastecimento, que considera “extremamente relevante para uma verdadeira economia circular e um menor movimento de bens”.

Ainda assim, os ambientalistas consideram que o plano “não prevê as rupturas necessárias para colocar Portugal na rota da sustentabilidade”, sobretudo porque “a visão subjacente a todo o documento assenta no modelo económico vigente”. Por isso, a Zero considera que falta a este plano para os próximos dez anos “um visão inovadora e sustentável” para o país, capaz de aproveitar as novas possibilidades demonstradas pelo contexto actual — seja pela redução do consumo, pela necessidade de cadeias mais curtas de produção e abastecimento ou por uma abordagem diferente ao turismo, mais assente na proximidade.

A associação critica também o que diz ser a ausência de referências “aos indivíduos e às famílias enquanto agentes promotores de uma economia sustentável”, concluindo que “o documento assenta numa visão estratégica já vigente que fica muito aquém das necessidades de políticas e medidas mais profundas e coerentes que garantam a sustentabilidade do desenvolvimento”.

Esta análise, associada ao receio de que este poderá ser “mais um documento inconsequente”, em que os aspectos positivos relacionados com a sustentabilidade possam ser ultrapassados por outros interesses, levam a Zero a defender em comunicado, que o momento actual, sendo de “escolhas difíceis”, é também “o momento que definirá o nosso futuro colectivo”, apelando à coragem para “promover a transição para a sustentabilidade, fundamental para a sobrevivência da espécie humana”.

Após o encerramento da consulta pública, também a Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta divulgou os contributos apresentados durante esse período. Lembrando a importância da bicicleta para a saúde, sustentabilidade e a economia - Portugal foi em 2019 o maior produtor europeu deste meio de transporte -, esta entidade defende, entre outras medidas, que o país “necessita de uma estratégia e programa para a mobilidade alternativa à dependência excessiva do automóvel” e que os diferentes níveis de gestão do território devem ser envolvidos nessa estratégia, sobretudo no que se refere ao seu financiamento e à criação das redes de infra-estruturas necessárias à sua implementação. “A discussão pública da reforma do sector do transporte urbano não pode ser remetida para uma qualquer urgência de carácter eleitoral”, avisa.

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