Um homem de fé
Jornalista, crítico de televisão, escritor, crente, marxista. Mário Castrim (1920-2002) faria amanhã 100 anos.
Antes de começar, cabe-me fazer uma breve declaração de interesses, em nome do rigor: Mário Castrim foi uma das pessoas que marcaram decisivamente a minha vida e o rumo que ela tomou desde muito cedo. Foi muito graças a ele que entrei na profissão que ambicionava e nunca mais deixei de exercer, mas é também bastante devido a ele que insisto ainda nos velhos mandamentos do ofício, muitos deles hoje em processo de desagregação acelerado em tantas redacções de jornais, rádios e televisões. De facto, Mário Castrim foi não apenas o impulsionador directo da minha profissionalização no jornalismo (ainda nos anos 70 do século passado, tal como fez com distintos outros camaradas da minha geração), mas também um mestre que nunca deixou de o ser, nem sequer quando, por razões que a vida tem e que dificilmente se explicam a quem por elas não passou, nos afastámos ou deixámos afastar do convívio regular.
Posto isto, a prosa:
Um dos traços distintivos mais admiráveis de Mário Castrim era, em minha opinião, a sua fé inabalável. Em Deus, por certo, pois que nunca deixou de acreditar no “outro lado”, mas também, e talvez sobretudo, no ser humano e nas suas capacidades. E num futuro à medida delas, para todos os homens e mulheres do povo que sinceramente amava.
Mário Castrim era o exemplo vivo de que é possível ser crente e ser marxista. No caso dele, acreditar em Deus só poderia levá-lo ao Partido Comunista, por ser aí que entendia estarem os melhores dos melhores. E por ser dali que acreditava poder nascer uma sociedade mais justa, menos desigual – e consequentemente mais divina, porque mais humana.
Mário Castrim era muito isto. Mas não era só isto.
Profissionalmente nunca claudicou perante a busca incessante da verdade – e não esqueçamos: a crítica de televisão celebrizou-o, mas, antes e durante, era e continuou a ser jornalista, sabedor e cumpridor das normas éticas e estéticas do mister. Observador atento do fenómeno televisivo desde que ele surgiu em Portugal, fez dessa tarefa uma arte e um serviço público. Ou uma missão.
Os milhares de textos, em doses diárias, que escreveu no Diário de Lisboa (e, após o fecho do DL, semanalmente no Tal & Qual) eram lidos com admiração e respeito, as suas críticas eram temidas pelos visados, tanto quanto os seus elogios eram recebidos como preciosos troféus. Anos a fio, Mário Castrim passou noites e noites frente ao televisor, acordado até muito depois de quase todos nós, a analisar e a escrever sobre o que passava na televisão. Quando ainda não havia gravadores de vídeo, usava velhos bauers de bobines (poderiam ser grundigs, já não sei ao certo) para registar o que se dizia no caixote animado. Em nome do rigor e da verdade, lá está.
As crónicas eram deixadas depois no saco do pão pendurado do lado de fora da porta, de onde um estafeta da redacção se encarregava de as levantar, pela madrugada. Ele sabia, melhor que ninguém, do imenso poder que vem da “caixa mágica” que mudou o século XX e continua a transformar o século XXI. E por isso se entregou à observação dos seus feitos e dos seus efeitos, metódica e meticulosamente, e fez disso a missão da sua vida. Verdade se diga: muito do que de melhor hoje existe na televisão em Portugal deve-se em boa parte ao seu espírito crítico aguçado. E muito do que de pior subsiste talvez fosse diferente se, a seu tempo, algumas questões que Mário Castrim levantava tivessem tido outra receptividade.
Conta-se a este propósito uma história interessante que se terá passado em princípios dos anos 90, quando começou a desenhar-se a atribuição de um canal de televisão à Igreja Católica. Em conversa privada, o cardeal-patriarca, António Ribeiro, ter-lhe-á pedido opinião sobre o assunto. E Mário Castrim não foi de meias palavras. “Cuidado”, avisou. “Vai meter-se com um demónio que não consegue dominar.” O cardeal não seguiu o conselho e, em 1993, nascia a TVI. A Igreja largou o projecto cinco anos depois, e a TVI deu no que se sabe.
Mário Castrim também era isto. E ainda mais.
Na literatura não foi tão longe como poderia apenas porque, uma vez mais, o espírito de missão com que encarava o seu trabalho se sobrepôs a tudo o resto. Ainda assim, foi um contista premiado, além de autor de diversos livros sobre a temática televisiva, obras ainda e sempre essenciais a quem queira estudar seriamente o fenómeno e as implicações dele na nossa vida. E distinguiu-se sobretudo pelos livros direccionados ao público infanto-juvenil que lhe mereceram elogios largos e o reconhecimento generalizado. Guardo ainda uma preciosa primeira edição de O Cavalo do Lenço Amarelo é Perigoso e mais uma série de títulos que publicou nesta área – sendo que tenho para mim, desde sempre, que a chancela de “literatura juvenil” é, em muitos deles, apenas um modo de dizer, já que é de literatura tout-court que se trata. Mesmo. E da melhor.
Foi, também, um poeta produtivo e empenhado na redescoberta e reinvenção permanente das palavras. E nos valores maiores em que acreditava: a liberdade, a justiça, a solidariedade, de resto matéria recorrente nos textos que escreveu. Poetizando o humor e a vida, os pequenos e os grandes gestos, publicou-se em livro e em jornais. Igualmente aqui, o sentido militante da escrita não desvanece o rigor estético que se revela ora em textos minúsculos [És livre? / Isto é: / quem amas?], ora em versos simples [Esperança: / é a maneira / como o futuro fala / ao nosso ouvido. / Depois / há que saber / organizá-lo. (…)] ou em rimas de cadência infantil [(…) tenho uma janela / que dá para o mar / tenho uma janela / que seria bela / seria mais bela / que qualquer janela / (…) se não fosse aquele / pescador já velho / que anda pela praia / a pedir esmola (…)], sempre com um profundo sentido de entrega ao mundo e aos outros.
Mário Castrim é isto. E mais.
Comecei por dizer que era um homem de fé. E foi isso, com toda a certeza, o que a certa altura nos afastou. Desacreditei dos deuses muito cedo, apesar dos esforços generosos do padre António da minha adolescência. E quanto aos homens, enfim, tem dias: pois se é verdade que posso dizer, como José Mário Branco, que “vi este povo a lutar / para a sua exploração acabar”, não é menos verdade que olho em volta e me cansa a mansidão em que mergulharam os meus pares, esta quietude resignada que nos fez suportar quase meio século de fascismo com a mesma placidez com que, agora, tantas vezes aguentamos o aviltamento da democracia, conspurcada pela vontade dos “mercados” e dos donos do mundo.
Mas a matriz cultural judaico-cristã é-nos comum a todos, queiramos ou não, o que tanto dá para o bem, como para o mal, como até para o nem-sim-nem-não característico de tanta lusitana gente. Em Mário Castrim, essa matriz moldou-lhe a perseverança que fez dele um guardião animoso das suas convicções.
As questões de fé são, todos o sabemos, indiscutíveis, e não permitem meios-termos. Ou se acredita ou não se acredita, ou se tem ou não se tem, ou se está ou não se está. E foi assim que, quando, perdida a fé em deus e transviado da fé nos homens, achei por bem seguir o meu caminho à margem de agremiações político-partidárias, o Mário fez parte do reduzido número dos que não conseguiram aceitá-lo – mesmo se o meu rumo fosse contíguo ao dele e bastas vezes feito por uma rota semelhante.
Foi assim. De todos os encontros e desencontros da minha vida, este foi sem dúvida dos que mais tempo demorei a conseguir explicar, e ainda hoje não sei se sou capaz de fazê-lo plenamente. Porque doeu e, escarafunchando, ainda dói. Mas sei que, apesar da mágoa, não me ficou daí rancor algum. E quero acreditar que a ele também não. Porque, afinal, trata-se de um homem de fé. E quem acredita tanto não tem tempo nem espaço para alimentar o ódio.