Contra a cicloditadura!

“Todo o mundo sabe — excepto o Fernando Medina, que está vendido à malta da licra — que a bicicleta é um instrumento de lazer”, li algures no Facebook, escrito por portugueses e portuguesas irritados pelo espaço que as novas ciclovias de Lisboa lhes roubam.

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Jornal Publico

Lido no “Hatebook”: “Português irritado. A Câmara de Lisboa anda a dizer que quer tirar automóveis da rua porque eles ocupam 60% do espaço. E não está bem assim? Os automóveis fazem parte da cidade, assim como as pessoas. As bicicletas e trotinetas é que não fazem cá falta nenhuma. Todo o mundo sabe – excepto o Fernando Medina, que está vendido à malta da licra – que a bicicleta é um instrumento de lazer e é por isso que eu, que também tenho uma bicicleta, acho que as ciclovias só deviam ser feitas em sítios bons para dar umas voltas ao fim-de-semana, ou então aproveitando alguns passeios muito largos na cidade.”

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Lido no “Hatebook”: “Português irritado. A Câmara de Lisboa anda a dizer que quer tirar automóveis da rua porque eles ocupam 60% do espaço. E não está bem assim? Os automóveis fazem parte da cidade, assim como as pessoas. As bicicletas e trotinetas é que não fazem cá falta nenhuma. Todo o mundo sabe – excepto o Fernando Medina, que está vendido à malta da licra – que a bicicleta é um instrumento de lazer e é por isso que eu, que também tenho uma bicicleta, acho que as ciclovias só deviam ser feitas em sítios bons para dar umas voltas ao fim-de-semana, ou então aproveitando alguns passeios muito largos na cidade.”

Qualquer pessoa que tenha filhos, tarefas e horários para cumprir não vai de bicla, aliás, como se vê nas ciclovias que insistem em fazer, e que estão sempre vazias, porque só os turistas e os da licra as usam. Estes senhores deviam fazer estudos a sério e muitos mais debates, antes de avançarem com obras inúteis contra a vontade do povo que os elegeu. É um crime andarem a aproveitar a pandemia para nos roubar o espaço. Nem é por mim que me queixo. É que, ao encurtar as vias para os automóveis, estes ignorantes estão a prejudicar o acesso das ambulâncias aos hospitais, um problema que podia acontecer aqui e ali, mas que era raro. Agora farto-me de ver gente a escrever sobre isso e, pelo que depreendo, não é pelo facto de os veículos de emergência poderem usar as vias dos ciclistas, como dizem, que a situação melhora.

Sim, e além do mais, estes autarcas armados em modernaços estão a violar o meu direito constitucional a circular, e estão, ao contrário do que dizem defender, a aumentar a poluição, porque os carros ficam mais tempo parados nas filas. E isto acaba por atrasar também os autocarros. É por esses atrasos, na verdade, que eu não uso o transporte público, e sou obrigado a andar de carro. Não está na constituição, claro, mas também lamento que, por causa desta mania importada do estrangeiro, nas ruas que ficam só com uma via na faixa de rodagem as pessoas não possam parar em segunda fila, só por alguns momentos, prejudicando o comércio tradicional, que perde clientes e vê dificultadas as cargas e descargas. Estas têm lugares definidos, mas devia haver mais, porque as pessoas que lá deixam o carro indevidamente só o fazem porque precisam mesmo de estacionar.

Ainda por cima, estas bicicletas não têm matrícula nem pagam Imposto Único de Circulação e, quando vamos a ver, estes ciclistas ociosos estão a circular nas estradas como nós, os que andamos de carro para trabalhar e as pagamos com os nossos impostos, atrapalhando o nosso caminho, sem que os possamos ultrapassar. Quem pôs aquela regra do metro e meio de distância ao ciclista vê-se mesmo que não conhece as estradas portuguesas e parece que quer que andemos todos a 20 ou 30 a hora na cidade, atrás deles. Para isso, mais valia comprar um burro e uma carroça.

O pior é que muitos nem usam capacete nem têm seguro, para o caso de se espatifarem contra um carro. Todo o mundo sabe que é inseguro andar de bicicleta — eu não deixaria os meus filhos fazê-lo porque podem cair e aleijar-se. Já me disseram no Facebook que morrem mais tipos de carro com lesões cerebrais, e que os condutores como eu, visto desta forma, também deveriam usar capacete, mas isso é uma tontice. Aliás, acusam-me de nunca ter escrito nenhum post sobre automobilistas a fazer manobras perigosas, mas isso é fácil de explicar: é natural que, face às fracas condições das nossas ruas, às vezes seja preciso ultrapassar por linhas contínuas (eu nunca o fiz, claro!) ou estacionar junto a cruzamentos (devia haver mais lugares, para isto não acontecer!) ou em cima do passeio (devia haver mais lugares, e gratuitos, repito!).

O que não é natural é ver tantos ciclistas a pôr a vida deles, e a nossa, em risco. Além de serem poucos, são uns irresponsáveis, que andam nos passeios atropelando os peões, para além de que passam sempre nos vermelhos, nos semáforos, para virar à direita. A sorte é que, como eu digo, o Inverno há-de chegar, e ninguém anda de bicicleta com mau tempo. Portugal, tirando Aveiro, tem muitas colinas — só Lisboa tem sete — e não tem clima para isto, porque chove muito, e o vento, se não é chato para ir, é chato para vir. Não percebo, por isso, por que é que temos de gramar com esta cicloditadura. Ó Medina, vê lá se aprendes alguma coisa e se insistes mas é com o Costa para baixar o preço do gasóleo, que isto não é a Holanda nem Copenhaga.

Pausa para respirar

O texto que acaba de ler é uma ficção. Ou nem por isso. Todo ele foi construído com argumentos retirados de centenas de comentários de pessoas que, por princípio, antagonizam a transformação do espaço urbano (independentemente dos erros que, neste processo, se cometam). E que reagem desta forma — e de outras impublicáveis aqui — a ciclovias recentemente inauguradas em Lisboa. Aconteceria igual, na maior parte do país, onde a distribuição do espaço público entre os vários modos é semelhante ou, muitas vezes, mais favorável ainda ao automóvel. A maior parte destes argumentos baseiam-se em falácias, como estas que a iniciativa Compromisso pela Bicicleta desmonta neste post, mas também no receio, admissível, de que a nossa vida seja prejudicada com qualquer mudança. 

Nenhuma das pessoas que escreve este tipo de comentários defenderia a violação de um semáforo vermelho por um automóvel, como a que provocou o recente atropelamento de Ana Oliveira, que seguia a pé, com uma bicicleta na mão, numa passadeira no Campo Grande, em Lisboa. Mas os seus comentários reflectem muito de uma cultura centrada no automóvel individual, que vai ser preciso mudar até chegarmos a um necessário reequilíbrio de forças e de espaço nas cidades, em favor dos seus utilizadores mais vulneráveis, do transporte público, e de uma redução drástica da sinistralidade rodoviária.

Do outro lado destes comentários estão activistas do uso da bicicleta no quotidiano, que têm direito a fazer ouvir a sua voz em defesa de um espaço público democrático e socialmente justo. Mas a estes cabe demonstrar também, com cabeça fria, e com uma delicadeza e exigência pelo cumprimento de regras que falta às vezes também no seu campo, que o que estão a pedir é simplesmente algo que lhes foi sonegado. E que é benéfico para todos, e até para aqueles que precisarão de andar de carro, numa cidade com menos carros. O caminho é longo, mas é urgente, e necessário.