Educação, vigilância e docilidade

A videovigilância de exames acarreta efeitos colaterais de longo alcance e magnitude que são indissimuláveis.

Imagine o leitor que é um aluno de um instituto politécnico ou de uma universidade e que para ser avaliado numa dada disciplina tem de realizar um exame. Está em sua casa e tem um computador ligado à internet. Introduz as credenciais que recebeu da escola para realizar o exame. A seguir é-lhe solicitado que filme, com a câmara do computador, a sala onde se encontra. Também lhe é pedido que mostre à câmara o seu cartão de cidadão e que nela fixe o olhar, tirando os óculos da cara, por alguns segundos. Depois é-lhe pedido para mostrar uma orelha de cada vez à câmara, afastando o cabelo.

Até aqui as imagens foram gravadas e analisadas por um programa informático que corre num servidor distante. Nesta máquina, propriedade de uma empresa contratada pela universidade, o software procurou nas imagens sinais da presença de pessoas ou objetos considerados incompatíveis com a privacidade e recolhimentos exigidos para um exame sem fraude. O cartão de cidadão mostrado foi comparado com a fotografia da matrícula escolar e ambas foram contrastadas com os dados biométricos do reconhecimento facial feito quando fixou o olhar na câmara. As imagens das orelhas foram analisadas para procurar a presença de auscultadores.

Pedem-lhe para ler uma frase para o microfone do computador, para assim se reconhecer a modulação da sua voz. A partir de agora o som ambiente, captado pelo microfone, passou a ser analisado para detetar a presença de outras pessoas, de outros aparelhos ou de sussurros inusitados. Pede-se-lhe agora que ligue o telemóvel (que indicou no formulário da matrícula) por Wi-Fi. O programa que tem estado a dar-lhe instruções passou agora a recolher as imagens das duas câmaras e o som dos dois microfones do telemóvel. Estará a analisá-los em contínuo até ao fim do exame.

Depois de o programa informático digerir toda a informação preliminar, “autenticá-lo” e se assegurar que está sozinho, liberta-lhe as perguntas do exame. Tem um intervalo de tempo pré-acordado para dar resposta às questões que se sucedem em várias badanas ou páginas no ecrã.

Este não é um cenário fantasioso de uma sociedade distópica e indesejada. Programas informáticos como o descrito são desenvolvidos e livremente comercializados há uma década. Chamam-se “plataformas de e-proctoring”, “remote proctoring”, “virtual proctoring” ou “online proctoring”. Podem ser adquiridos e usados com muito poucas restrições, porque se baseiam na aceitação “voluntária” pelos intervenientes (escolas, alunos, professores) das condições orwellianas de funcionamento dos mesmos.

Quem tem poder de decisão olha para a implementação destes programas como mais uma via para, a cobro da panaceia da “transição digital” e de algumas competências pós-covid-19, reduzir a despesa nos politécnicos e universidades, facilitar a formação de mega-turmas e captar alunos para um novo ensino à distância.

Mas a videovigilância de exames acarreta efeitos colaterais de longo alcance e magnitude que são indissimuláveis. A videovigilância é um bom ponto de partida para uma sociedade com cidadãos obedientes, apáticos, individualmente isolados, dispostos a ceder parte da sua privacidade doméstica para fins institucionais, com uma socialização volátil, acríticos, rendidos à dependência das telecomunicações para o exercício dos seus direitos individuais mais elementares, e também com um curso superior.

Um jovem que cedo se veja conformado com a inevitabilidade de ser vídeo vigiado para obter uma escolarização superior, será seguramente um bom missionário da docilidade e conformismo ao longo da sua vida.

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