O Liberalismo incomoda os extremos

Os princípios liberais têm respostas para os problemas com que hoje nos defrontamos, incluindo o tribalismo identitário de Esquerda e de Direita.

Assistimos hoje a uma fulgurante luta entre a esquerda e a direita identitárias. Percebe-se que a direita identitária e a esquerda identitária se fulminem mutuamente. No meio da confusão e das trocas de acusações, é mais difícil as pessoas aperceberem-se que são duas faces da mesma moeda. A direita e a esquerda identitárias pretendem, ambas, coletivizar e abolir o indivíduo. São rolos compressores da democracia pluralista em que vivemos. Ao olharem uma para a outra, estão essencialmente a olhar para o seu próprio reflexo. E caso este encontro se materialize, ambas decerto se dedicarão a atacar o Liberalismo, como é, aliás, seu apanágio.

Donald Trump, Jair Bolsonaro ou Viktor Órban são as faces da direita identitária. Representam o nepotismo, a corrupção, o culto de personalidade, a diabolização da oposição e o pendor autocrático, a ideia de que as pessoas são intrinsecamente diferentes umas das outras, e que existe uma divisão estática e necessária de funções sociais. Viveríamos também bem sem guerras comerciais, sem capitalismos de compadrio, sem diabolização da imprensa, sem perseguições à sociedade civil e sem tentativas de instauração de um domínio do poder executivo sobre os poderes legislativo e judicial. É necessária a liberdade de expressão e de escrutínio.

A esquerda identitária é também parte do problema. A negação da responsabilidade individual, a necessidade de reduzir as pessoas a certos grupos a que pertencem, em que todos têm que ter as mesmas posições, a ideia de que é preciso policiar o pensamento e a linguagem, as limitações à liberdade de expressão, dentro e fora das universidades, a vitimização de grupos inteiros de pessoas, apelos à abolição da propriedade privada e a diabolização do lado contrário. A defesa intransigente do regime venezuelano, mesmo em face da forma como lidou com eleições e como tenta silenciar a voz da oposição, é extraordinária.

Defrontamos hoje desafios de monta. E um desses desafios é precisamente o tribalismo extremado da Esquerda e da Direita identitárias. Os discursos de ódio, à Esquerda e à Direita, são estéreis em soluções e férteis em problemas. Ao abolir o indivíduo, corroem a comunidade. Agudizam as divisões dentro desta, numa lógica de intolerância dogmática e puritana, extremando posições e condenando o compromisso saudável e democrático. Impedem a existência de um diálogo institucional frutífero, que permita conciliar as diversas vontades e os diversos interesses. Ao tentarem higienizar a comunidade e criar grupos homogéneos, ignorando toda a complexidade dos seres humanos, geram os conflitos permanentes que dizem pretender ultrapassar.

O Liberalismo surgiu para lutar contra as grilhetas sociais, económicas e políticas que amarram a comunidade. Ao abraçarmos a liberdade individual, defendida pelos liberais, temos visto uma melhoria exponencial na qualidade e nas condições de vida de milhões de pessoas. Ao deixar a moral para a consciência individual de cada um, ao promover a tolerância, a curiosidade e a crítica e o debate de ideias, fomentámos níveis de desenvolvimento humano sem precedentes na História da Humanidade.

Os liberais defendem a liberdade como um direito de todos, não como um privilégio de alguns. E esse “todos” estende-se a todos os seres humanos. Cada ser humano é encarado como um indivíduo, único e irrepetível, e o Liberalismo defende o indivíduo, em todo o seu imperfeito esplendor. O Liberalismo não divide os indivíduos em categorias estanques, sempre em confronto, nem procura policiar o que está na cabeça de cada um. Encara cada um de nós como digno e complexo, com o direito de procurar a nossa própria felicidade, responsabilizando-nos, ao mesmo tempo, pelas nossas próprias atuações. E sim, o Liberalismo deixa a cada um de nós definir a sua própria identidade. Não compete ao Estado nem definir, nem impor identidades individuais. O Liberalismo assenta numa lógica cosmopolita e de cooperação, que encara a diversidade como uma força, e que se opõe a lógicas de confronto tribal contínuo. O Liberalismo defende instituições democráticas fortes e transparentes para que os indivíduos e os vários grupos intermédios dentro da comunidade possam compor os seus interesses.

E nestes princípios, parece-me, reside uma solução para superar os tribalismos de Esquerda e de Direita: (i) assegurar que as nossas democracias têm instituições que defendem os direitos individuais e a igualdade de oportunidades para todos, são abertas ao escrutínio, representativas dos diversos interesses e vontades na população, e incluem oportunidades efetivas de participação por parte dos cidadãos; (ii) promover uma economia de mercado concorrencial, com o mínimo de barreiras à entrada, com entidades reguladoras adequadas, combatendo-se o capitalismo de Estado e de compadrio, bem como externalidades negativas; (iii) acesso de todos a serviços sociais (na educação, na saúde, na assistência em casos de necessidade especial) de qualidade, independentemente da sua condição ou estatuto social ou económico, e independentemente de quem os providencie; (iv) fortalecimento das instituições europeias e internacionais, simplificando e tornando mais transparente o seu funcionamento, aproximando-as dos cidadãos e promovendo uma globalização inclusiva.

Os princípios liberais têm respostas para os problemas com que hoje nos defrontamos, incluindo o tribalismo identitário de Esquerda e de Direita. Mas nem toda a Esquerda e nem toda a Direita são identitárias. Aliás, não é por acaso que há quem defenda que os conceitos estão gastos e ultrapassados. Há ampla margem para debate e para compromisso, dentro da complexidade que existe no mundo político. Os liberais cá estarão, prontos para os defender e debater entre si e com defensores de outras ideologias. São problemas difíceis, mas a sua dificuldade não nos deve dissuadir de lutar por uma sociedade mais livre, com maior igualdade de oportunidades e com instituições democráticas fortes, abertas e transparentes, promovendo-se a paz, o comércio livre e a cooperação a nível global.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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