Tolentino de olhos fechados

Em Macau, Tolentino Mendonça preferiu calar-se perante uma injustiça. Pactuou com a censura e a real politik, à espera de agradar aos poderes políticos.

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Nuno Ferreira Santos

A Universidade de São José (USJ) é uma instituição de ensino superior criada pela Universidade Católica em Macau. Beneficia da relativa autonomia existente em Macau, face à China, mas não é ‘reconhecida’ pela República Popular da China (RPC).

Éric Sautedé era professor dessa Universidade, até que foi despedido, em 2014, alegadamente, por motivos políticos (o outro argumento, que não tinha concluído o doutoramento, aplicava-se a muitos outros docentes da USJ, como era público).

Politólogo, Sautedé comentava regularmente a atualidade política local (e também de Hong Kong), não se inibindo de criticar o Governo e algumas das opções da RPC. Era uma voz incómoda numa terra onde se contam pelos dedos os docentes universitários que têm pensamento autónomo face ao crescente processo de integração de Macau na RPC e em que a liberdade académica existe mais no papel do que na prática (escrevo-o sem receios, assente em muitos anos de contacto com dezenas de docentes das universidades de Macau).

A USJ justificou a dispensa com os comentários e pesquisas sobre a política local feitas por Sautedé, que poderiam colocar a universidade numa “situação delicada”. “Se há um docente com uma linha de investigação e intervenção pública [política], coloca-se uma situação delicada. Ou a reitoria pressiona e viola a sua liberdade, ou cada um segue o seu caminho”, explicou na altura Peter Stilwell, reitor da USJ.

Uma evidente violação da liberdade de expressão e da autonomia criativa do docente. Um dos mais importantes politólogos sobre aquela zona do mundo, o antigo professor da Universidade de Stanford, Ming K. Chan (entretanto falecido), classificou o caso como “uma nova inquisição”.

Nesse mesmo ano, o então vice-reitor da Universidade Católica visitou Macau e os jornalistas não se esqueceram do que tinha acontecido. José Tolentino Mendonça comentou o despedimento com questões de “percurso académico”: “Em questão estiveram o percurso académico e os graus que são necessários para ensinar a longo prazo numa universidade”, disse o agora cardeal. “Estamos solidários com a reitoria da USJ. A universidade tem de pedir aos seus docentes uma qualidade académica no sentido de concluírem todo o seu percurso académico, o seu doutoramento e graduações”, comentou, referindo-se ao facto de, em sete anos de docência na USJ, Sautedé não ter completado o seu doutoramento.

Em resposta, o investigador – que agora leciona numa universidade de Hong Kong – afirmou que o doutoramento não era requisito para leccionar na universidade em Macau e que “mais de metade dos meus antigos colegas teriam que ser demitidos, o que não acontece na USJ”, dando até o exemplo de um diplomata que serviu em Macau depois da transferência e que foi recentemente contratado pela instituição que também não tem doutoramento.

Poderia Tolentino Mendonça ter dito alguma coisa diferente do que disse?

Estes são momentos definidores na vida de qualquer um.

Tolentino Mendonça preferiu calar-se perante uma injustiça. Pactuou com a censura e a real politik, à espera de agradar aos poderes políticos.

Tolentino Mendonça tinha o direito de dizer o que disse, mas quando leio que recentemente ganhou um prémio porque é preciso “ouvir as vozes desafiadoras dos principais intelectuais e artistas europeus, como Tolentino Mendonça”, que “devem orientar e inspirar os esforços coletivos para construir uma sociedade mais justa e mais inclusiva, para a Europa e para todo o planeta”, não posso deixar de dizer que Tolentino Mendonça fechou os olhos para Éric Sautedé.

P.S. – Soube-se este ano que o Tribunal de Última Instância de Macau decidiu a favor do politólogo, no processo movido por Éric Sautedé contra a USJ, que terá de responder no Tribunal Judicial de Base (1.ª instância). O académico francês, despedido em 2014, alegadamente por manifestar uma opinião política, pede mais de um milhão de patacas de indemnização por danos morais e patrimoniais. 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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