Resgatar a arquitectura

O embate com a complexidade dos desafios – da encomenda aos actos próprios, da legislação à internacionalização, até à defesa da Arquitectura como bem público, último bastião da profissão – exige novas formas de interacção, e outra presença e proximidade da Ordem dos Arquitectos junto da sociedade.

Foto
NELSON GARRIDO

Garante o ditado que “Quem não sabe é como quem não vê”; isto quer dizer que para agir é essencial à cabeça compreender as circunstâncias.

Com ou sem pessimismo, o panorama da encomenda pública e privada mudou há muito. Os grandes investimentos em infra-estruturas e em equipamentos públicos e boom da construção imobiliária ficaram para trás. 

A crise financeira e económica que se abateu sobre nós há quase uma década afectou todos os arquitectos. Houve quem teve de pôr termo à actividade e foi procurar emprego fora da profissão; alguns emigraram, outros resistiram com dificuldade e sobreviveram, e outros ainda foram procurar trabalho fora de portas.

A partir de 2015 iniciou-se uma recuperação económica que teve como principal motor o turismo e o país passou a estar no topo dos motores de busca na Internet.

Neste período, o retrato do centro de Lisboa e do Porto com imóveis devolutos e degradados deu lugar a uma versão das mesmas fachadas reabilitadas e com os interiores reconstruídos ou alterados.

Todavia, para atender ao boom turístico e ao investimento estrangeiro no imobiliário, através dos "vistos gold", enfrentamos hoje uma crise na habitação: enquanto uma parte de turistas e residentes estrangeiros se instalam na cidade, outra parte de famílias são despejadas de casas e ‘empurradas’ para os concelhos periféricos, devido à subida do preço dos imóveis.

A nova normalidade pós-covid 19 significa que não podemos contar como até aqui só com a prosperidade do turismo; felizmente, tudo leva a crer que o novo ciclo económico passará por mais investimento em áreas em que somos carentes.

A seguir aos anos da crise, muitos arquitectos, jovens e menos jovens, suspenderam a sua actividade, enquanto no decurso da recuperação económica assistimos ao aumento do número de arquitectos activos na Ordem dos Arquitectos (OA). De qualquer forma, este quadro contrasta com os primeiros tempos da OA, quando o número de membros activos crescia exponencialmente. 

A OA tem hoje de enfrentar a realidade de que, por ano, nos últimos anos, se têm formado cerca de 600 arquitectos de que o país dificilmente precisa ou virá a precisar tão cedo, e que tem, consequentemente, levado ao estado de sítio de desemprego elevado, principalmente entre os arquitectos mais novos, de que nem os mais aptos estão a salvo. Do mesmo modo, terá de lidar com a criação de um sindicato que se ocupe em definitivo das questões do emprego e do cumprimento das leis laborais.

Também a profissão não cabe já na simples divisão entre os arquitectos que desenvolvem projecto e os arquitectos que exercem actividade na função pública; estende-se a diversos campos e especializações sem fronteiras fixas. E, da mesma forma que a OA promove a prática tradicional, é preciso desta feita cobrir esse novo espectro da profissão com acções e políticas próprias.

Perante a erosão de competências da disciplina, a profissão parece particularmente vulnerável a um olhar nostálgico para o passado em que a prática do arquitecto era autónoma e indiscutível. Ainda bem que o tempo e o mundo são outros.

O embate com a complexidade dos desafios – da encomenda aos actos próprios, da legislação à internacionalização, até à defesa da Arquitectura como bem público, último bastião da profissão – exige novas formas de interacção, e outra presença e proximidade da OA junto da sociedade. Todavia a desadequação e o desajuste que os arquitectos consideram existir entre aquilo que a OA tem sido capaz de fazer e as dificuldades e problemas crescentes do exercício da profissão não se devem ao défice de estruturas locais e administrativas. Para aproximar a OA dos arquitectos é preciso que esta assuma um vínculo com todos nós de maior responsabilidade na defesa de uma melhor arquitectura, assegurando a qualidade do exercício da profissão.

Falta a pergunta para um milhão de dólares. Se há arquitectos em todo o território e alguns a ocupar altos cargos na Administração Pública; se hoje somos cerca de 26 mil (há 20 anos éramos seis mil); se continuam em funcionamento cerca de 15 cursos de arquitectura; se a arquitectura portuguesa foi galardoada com dois prémios Pritzker; se agora existe uma Política Pública de Arquitectura e Paisagem que vincula o Estado à defesa da Arquitectura; por que razão a Arquitectura e a profissão continuam sem chegar à maioria das pessoas?

Para ganhar este jogo, é preciso captar os sinais dos fenómenos que envolvem a Arquitectura e apreender os mecanismos da sua produção. É preciso mudar o que está mal, olhar o futuro diante dos desafios presentes e operar rupturas; combater a equidistância, a homogeneidade e o conformismo que faz tempo corroem a prática e a liberdade crítica da OA.

É preciso superar as distâncias relativamente à sociedade e à política. É preciso uma nova ideologia que nos volte a ligar às coisas próximas. É preciso um compromisso com a comunidade dos arquitectos e menos com as temáticas e o prestígio individual. É preciso romper com a cultura do star system, das rising stars, das stars, das superstars e das supernovas da arquitecturae da ficção do arquitecto-autor e do arquitecto-herói, criado pelos media e louvado nas conferências e nas universidades, cujo modelo tem tido consequências devastadoras na forma como a classe olha para si mesma, pela quantidade enorme de recursos que nos permitimos desperdiçar e pelas acirradas e constantes disputas por prémios.

É preciso resgatar a arquitectura como manifestação física de cultura e ética social, promover a empatia e a solidariedade entre colegas, cruzar olhares e preocuparmo-nos mais com o que está perto.

Célia Gomes
Paulo Serôdio
Paulo Durão 

Lista Arquitectura Perto, candidata às eleições da Ordem dos Arquitectos, que estão a decorrer

Sugerir correcção