Ouvir a criança não equivale a fazer o que ela quer

A criança tem o direito a ser ouvida e a expressar a sua opinião sobre os processos que lhes dizem respeito. É um direito da criança consagrado na própria Convenção sobre os Direitos da Criança.

A propósito de uma reportagem televisiva em que se acusam os técnicos e os tribunais de obrigar as crianças a conviver com os pais contra a sua vontade, importa esclarecer que ouvir a criança não equivale a fazer o que ela quer. E isto – note-se – independentemente do que se terá passado no caso da criança referida na peça jornalística, cujo processo concreto desconheço.

A criança tem o direito a ser ouvida e a expressar a sua opinião sobre os processos que lhes dizem respeito. É um direito da criança consagrado na própria Convenção sobre os Direitos da Criança. No entanto, perceber o que a criança pensa e sente não equivale a fazer o que ela quer. Se assim fosse, não estaríamos a ouvir a criança, mas sim a conferir-lhe o poder da decisão.

O processo de audição da criança, em tribunal ou noutros contextos, é uma forma de assegurar a salvaguarda deste direito da criança. E porque estamos perante um direito, e não um dever, a criança deve ser disso mesmo informada desde logo, sendo certo que tem também o direito a não querer ser ouvida. Caso queira, exige-se um processo de audição num ambiente amigável, conduzido por profissionais empáticos e com experiência em entrevistar crianças de uma forma adequada à sua idade e nível de desenvolvimento. 

Ora, e por falar em idade e nível de desenvolvimento, importa também falar em maturidade. Naturalmente que uma criança ou adolescente não tem a mesma maturidade de um adulto, seja a nível cognitivo, seja a nível moral, emocional e social. O conceito de maturidade cognitiva apela, por exemplo, à capacidade de compreender instruções e conceitos abstractos, estabelecer relações causa-efeito ou espacio-temporais, e ser capaz de comunicar informação relevante. Relaciona-se também com a capacidade para distinguir a realidade da fantasia e de manipular informação de forma racional e intencional. Por sua vez, a maturidade moral remete para a capacidade de a criança distinguir verdade e mentira, entender as normas sociais e ser capaz de ajudar terceiros. A maturidade emocional, por sua vez, está relacionada com a tolerância à frustração, a auto-regulação emocional e a gestão de emoções desagradáveis. Por fim, a maturidade social diz respeito à capacidade de partilha, cooperação e gestão de relações interpessoais.

Ao serem ouvidas, as crianças expressam o que pensam, sentem e querem, sendo que aquilo que verbalizam tem necessariamente de ser avaliado à luz da sua maturidade e de toda a informação disponível no processo. Porque nem todos os relatos são genuínos (é verdade, embora muitos pensem o contrário) e alguns são fruto de sugestionamento por parte de terceiros, pressões ou conflitos de lealdade. Quantas e quantas vezes não ouvimos as crianças reproduzir o discurso dos pais? Quantas e quantas vezes não as ouvimos dizer aquilo que sabem que um dos pais quer ouvir? Quantas e quantas vezes não as ouvimos dizer, não aquilo de que se recordam, mas aquilo que lhes disseram ter acontecido?

E sim, existem também muitas crianças que choram ao separar-se de um dos pais, enquanto são conduzidas pelos técnicos para junto do outro pai. Choro esse que logo cessa quando estão longe dos olhares do pai de quem se afastaram…

O que ouvimos na peça jornalística impressiona, mas é necessário compreender, antes de mais, as razões que levam uma criança a agir assim. O que não poderá fazer-se é tirarem-se conclusões precipitadas com base apenas num episódio descontextualizado.

Ouvir a criança é como se fosse a peça de um puzzle. Uma peça muito importante, é certo, mas não a única. Pois um puzzle faz-se de muitas partes e é com base no todo que as decisões devem ser tomadas. Significa que ouvir uma criança não equivale a fazer o que ela quer. Significa, mesmo, tantas vezes, fazer exactamente o contrário daquilo que ela quer. Como sejam os convívios com os pais rejeitados, se entendidos como importantes na perspectiva do superior interesse da criança.

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