Dia 48: A intimidade dos avós e dos seus netos

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Querida Filha,

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A melhor coisa que podemos ter com os nossos netos é intimidade. É um daqueles “estados” que não sei muito bem de que é composto, mas que reconheço instantaneamente. É como se o outro fizesse parte de nós, a sua pele fosse a continuação da nossa, bastando uma troca de olhares para sabermos exactamente o que está a sentir.

Talvez este exemplo seja estapafúrdio, mas é aquela pessoa a quem pomos protector solar sem que, por um instante que seja, nos sintamos desconfortáveis, hesitantes ou a invadir o seu espaço.

Era fácil dizer que a intimidade é apenas o resultado de estarmos muitas vezes ou muito tempo junto de alguém, mas não é verdade. Nem tão pouco é sinónimo de amizade ou de amor, porque ambos são possíveis sem que a intimidade exista verdadeiramente. E, às vezes, com pessoas raras é certo, podemos sentir intimidade mal as conhecemos.

Pronto, vou desistir de me armar em pivô de televisão em tempo de covid-19. Chega de poesia barata. O que quero dizer é que os momentos que passo com as tuas filhas produzem em mim esta sensação. Apanhamo-nos a rir para dentro do chapéu da senhora sentada na esplanada do café, percebemos que nos faz pele de galinha a forma arrogante como aquele homem fala ao empregado, ou comovemo-nos em simultâneo com o bebé que está à nossa frente a ensaiar os primeiros passos. E, mesmo sem pensar, procuramos as mãos umas das outras, ou o aconchego de um abraço. Enche-me o coração e carrega-me as pilhas, e só peço que o crescimento delas, a inevitável crise da adolescência ou a minha senilidade não nos roube tudo isto.

Sorry, já estou a resvalar de novo para a piroseira. Além do mais esta tentativa de redacção é inútil, porque tu sabes bem de que estou a falar.

Tenho dito.


Querida Mãe,

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Na verdade, não é nada um esforço inútil. Deu-me muito que pensar. Usamos a palavra intimidade tantas vezes, mas nem sempre com o mesmo significado. Li algures que a maior parte dos homens afirmavam que a primeira coisa em que pensavam quando ouviam a palavra intimidade era em sexo. Já as mulheres respondiam que era um abraço ou um beijo. Com a sua carta percebo que nem uma resposta, nem outra, abrangem tudo o que a intimidade representa.

Hoje vi no Facebook uma aula de Pilates gravada por uma rapariga com quem andei na escola durante 12 anos. Não a vejo há quase 15 e, no entanto, senti-me surpreendentemente próxima dela — apesar de ela viver do outro lado do mundo, das vidas absolutamente diferentes e de não falarmos há séculos. É estranho. Quanto à questão do toque, é mesmo fácil e instintivo com umas pessoas e nada com outras, será que é “química”? Essa coisa mágica, de que não conhecemos bem as leis?

Seja como for, a sua carta deixou-me curiosa e, num intervalo da telescola, consegui resgatar o meu computador para investigar se havia Ted Talks ou conferências que me ajudassem a responder às suas dúvidas. Conclusão, encontrei um vídeo engraçado num canal do YouTube chamado SoulPancake, que tem uma rubrica chamada A Ciência do Amor. Falavam em dois ingredientes necessários para a intimidade: a vulnerabilidade e a curiosidade.

Talvez a intimidade de que a mãe fala, se explique pela disponibilidade que sentimos quando estamos perante alguém que, temos a certeza, nos vai acolher como somos, sem tirar partido das nossas fragilidades, e que revela uma curiosidade genuína sobre nós (interessa-se mesmo pelo que lhe temos para dizer). Essa combinação permite-nos sentir o prazer da relação, sem o medo. Talvez, a intimidade seja isso: o prazer sem o medo. Conseguir estar em silêncio junto de outra pessoa, sem medo de que fique chateada; conseguir estar nua sem medo do que o outro pensará do nosso corpo; conseguir apontar um erro sem ter medo do conflito que daí pode surgir. Faz-lhe sentido?

Nas relações com as crianças há uma vantagem: mostrar e aceitar vulnerabilidade e sentir curiosidade são coisas que as crianças fazem com uma enorme facilidade, o que poderá explicar porque é que, de um modo geral, temos facilidade em estabelecer com elas uma relação de intimidade.

Quanto aos netos suspeito que a intimidade que criamos (ou não) com eles transborda da intimidade que temos com os seus pais. Se a relação entre avós e netos é ensombrada, mesmo que de forma discreta e subtil, pelo receio de que os filhos/pais se podem desiludir, zangar, discordar ou desprezar aquilo que escolhem dizer/fazer quando estão juntos, deve ser impossível que se entreguem genuinamente e, se assim for, a intimidade é impossível. Pelo contrário, se apesar das inevitáveis birras com os seus filhos/noras/genros, os avós (mas também os netos) estiverem seguros de que têm carta-branca, que lhes é consagrada uma confiança sem reservas, então estão “autorizados” a entregar-se mutuamente. Com prazer e sem medo.

Segundo a minha recém-criada teoria fico feliz que apesar de nos dedicarmos diariamente às birras, eu veja a vossa intimidade a crescer a olhos vistos!


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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