A invisibilidade da morte

A higienização anulou a vivência da morte. Removemo-la do mundo dos vivos. Dizem-nos diariamente que morreram um certo de número de pessoas e é tudo.

Só números. Quase não há imagens. E palavras também não. A morte tornou-se omnipresente com a pandemia, mas é como se a tivéssemos eliminado. É mera conceptualização. Um comprovativo para estatísticas. A não ser, claro, que ocorra a alguém que nos é próximo. Nesse caso é diferente. Mas quanto mais distante maior a indiferença.

Todos os dias o ritual se repete. Tentamos saber os números do dia. As mortes. Os infectados. Nas primeiras semanas interrogávamo-nos se haviam subido ou descido, olhando para os gráficos, numa obsessão quotidiana que trivializava a realidade brutal que estes representavam. Agora, já nem isso. Estamos em suspenso. Quando muito propaga-se pela população uma estranha angústia à medida que os números aumentam.

Não há rostos, nomes, histórias de vida. Apenas essa percepção que parte de nós integrou, entre a culpa e o alívio, que deverão ser idosos ou ter doenças crónicas. Não há praticamente imagens nos media que contenham essa sugestão de fim. Morre-se sozinho no hospital ou nos lares de 3.º idade quase em segredo. Os funerais estão desertos de pessoas e emoções, como se a realidade fosse uma máscara misteriosa.

Até a palavra morte foi quase ocultada, o que supõe a eliminação mental da realidade que transmite. Agora as pessoas faleceram, partiram, deixaram-nos ou perdemo-las, mas raramente morreram. A higienização anulou a vivência da morte. Removemo-la do mundo dos vivos. Dizem-nos diariamente que morreram um certo de número de pessoas e é tudo.

Mesmo quando vimos as imagens de valas comuns em Nova Iorque, com caixões em fileira a serem colocados em fossas por funcionários de fato branco e máscaras de protecção, o anonimato permaneceu. As autoridades utilizavam aquele local para sepultar corpos não reclamados.

Agora a lógica persiste. Se a família não tem recursos para um funeral, é ali que os vitimados pelo vírus são deixados. Não há identidade. Apenas um registo com códigos numéricos. Uma invisibilidade que reproduz o destino dos judeus em Auschwitz, despossuídos do nome para não serem identificados. Para que deixassem de existir e não fossem chorados.

O que está a acontecer na nossa relação com a morte não constituiu surpresa. Os sintomas estavam aí. Agora intensificaram-se bruscamente. Já sabíamos que se havia burocratizado e desumanizado, perdida na voragem do tempo produtivista. A paragem, contemplação e seus rituais não se compadecem com outro ser omnipresente e todo-poderoso, os mercados, que fazem com que a maioria apenas consiga lutar pela sobrevivência. Agora temos também o vírus. E se os mais privilegiados tinham sonhos de imortalidade, que a tecnologia prometia, ou desejos de prolongar a vida, através do esforço, do exercício, de uma vida saudável, da ausência de traumas, enfim, com muita disciplina, eles também esmoreceram.

A epidemia veio lembrar-nos que permanecemos enraizados na nossa existência corporal com todos os perigos que isso implica. E, no entanto, temos dificuldade em admitir a vulnerabilidade a que estamos submetidos. Custa-nos aceitar que vírus, epidemias e morte fazem parte da vida. É como a dor e o sofrimento. A sensibilidade contemporânea entende-as como doença, erro, algo a ser negado, evitado ou corrigido.

Talvez seja necessário produzir novas imagens, outros sentidos, que façam existir tudo o que a negação da realidade tem impedido de revelar. Os números são utilizados para sustentar uma imagem que reproduz invisibilidade e que nega a gravidade e dor pelas mortes expostas nas estatísticas. É preciso imaginar uma nova vida sob condições virais. E isso passa também por não permitir que as consequências do momento actual transformem definitivamente o sentido da morte numa abstracção.

Sugerir correcção