A hora decisiva de Ursula

Um processo por infracção à Alemanha, como admitiu Von der Leyen, é histórico. Mas é a única resposta à altura das circunstâncias.

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Reuters/Francois Lenoir
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O arranque do discurso da presidente da Comissão, Ursula Von der Leyen, no sábado, dia da Europa, é muito bonito e vou copiar três parágrafos: “Caros amigos, há 70 anos, uma declaração de menos de dez minutos iria mudar o destino de um continente. A França, pela voz de Robert Schuman, estendeu a mão à Alemanha e a toda a Europa. Schuman propôs um gesto de solidariedade. Solidariedade de facto. Desde então percorremos um longo caminho. O objectivo da solidariedade ainda é válido. Vou mais longe: é mais válido do que nunca.”

Os 75 anos do fim da Segunda Guerra e os 70 da declaração de Schuman, dois momentos fundadores da Europa como a conhecemos, tiveram as celebrações reduzidas aos tempos da pandemia mas foi possível reter o essencial: a Europa unida é uma ideia comovente apesar de todos os dias revelar as suas enormes contradições e fragilidade. Agiganta-se em dias de comemorações, falha em questões decisivas — as instituições portaram-se como zombies no início da pandemia e até agora estamos à espera de um projecto para combater a crise profunda em curso.

As comemorações e as palavras genericamente bonitas surgem dias depois da decisão do Tribunal Constitucional alemão de pôr em causa a legitimidade das “grandes compras do BCE” — o instrumento que Mario Draghi inventou para em 2015 salvar literalmente o euro, aquilo em que se traduziu o “whatever it takes” com que o então presidente do BCE prometeu aos europeus não deixar extinguir a moeda única. A reboque de um pedido da Alternativa para a Alemanha, o tribunal de Karlsrue dá uma machadada inacreditável nos mínimos olímpicos por que os europeus até agora se regiam. Ao considerar a “desproporcionalidade” das compras do BCE, o tribunal constitucional alemão faz implodir o direito europeu e de caminho implode a frase fundadora de Schuman repetida no sábado por Ursula Von der Leyen: solidariedade de facto.

Um processo por infracção à Alemanha, como este domingo admitiu Von der Leyen, é histórico. Mas é a única resposta à altura das circunstâncias. Consegue a Europa, por uma vez, enfrentar a Alemanha – e os seus fantasmas consubstanciados na Alternativa para a Alemanha, o partido de extrema-direita que está na origem do processo? Desta questão depende muito do futuro de uma Europa em crise há longos anos em que as palavras bonitas das comemorações dos grandes momentos não têm correspondência no dia-a-dia dos cidadãos. Ursula não pode falhar aqui, como não pode falhar no combate à recessão que está aí. Mais falhanços e a ideia da Europa acaba ou fica reduzida ao Festival da Eurovisão, que talvez volte quando acabar a pandemia.

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