Os optimismos militantes

Negar ou mascarar a tristeza, a revolta ou a mágoa é tão absurdo quanto pretender negar ou mascarar a passagem dos anos.

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Lesly Juarez/Unsplash

Há uma tendência que tem vindo a afirmar-se nas nossas sociedades, ditas cosmopolitas e modernas, e que perpassa a publicidade, as palestras motivacionais e as mil e uma iniciativas, mais ou menos esotéricas, que pretendem apascentar-nos os quotidianos: a de nos instar a sentirmo-nos permanentemente felizes e gratos.

É o equivalente, para a alma, à pressão para sermos magros, bonitos e, sobretudo, jovens. Equivalente em superficialidade e futilidade, mas também, equivalente em crueldade, em pressão e em frustração.

Porque nem todos podem ser magros, nem todos podem ser bonitos (seja lá isso o que for) e, de certeza, ninguém poderá ser sempre jovem, por mais botox, ácidos hialurónicos, ou puxa daqui e estica dali, a que submetamos os nossos rostos e os nossos corpos. Não podemos, ponto final.

De igual modo, não podemos sentir uma permanente felicidade, nem uma permanente gratidão, sob pena de estes conceitos – nobres na essência – se banalizarem, tornando-se tão superficiais, fúteis e cruéis, quanto se tornaram a beleza ou a idade.

Negar ou mascarar a tristeza, a revolta ou a mágoa é tão absurdo quanto pretender negar ou mascarar a passagem dos anos.

Negligenciar o potencial de sofrimento causado por determinadas situações é adiar, avolumando-o, o seu impacto emocional inevitável.

Porque nem tudo o que nos acontece na vida é bom, e o que é estranho é que esta lapalissada, não apenas precisa de ser dita e repetida, como é, até, olhada com estranheza e suspicácia.

Afirmá-lo, converte-nos, perante o imenso grupo de militantes da felicidade, nuns pessimistas, nuns desmancha-prazeres, e sentimo-nos como o mais gordo dos gordos, em pleno ginásio, o caixa de óculos de aparelho nos dentes, caído no meio de um desfile de moda, ou o velho enrugado e trôpego, agitando os braços no meio de uma festa adolescente. Somos os desconformes!

E se nem tudo o que nos acontece é bom, também nem tudo é merecedor da nossa gratidão — excepto, eventualmente, no que se refere à aquisição de experiência de vida.

Há acontecimentos que são injustos, que são maus, que nos fazem sofrer. E claro que, em simultâneo com estes acontecimentos, continua a haver amanheceres, e pássaros que cantam e uma natureza que floresce e crianças que riem. E isso é bom... Só que não nos chega para celebrar gratidões.

Mas parece que não deve ser assim. Parece que, hoje, tudo tem de ser olhado e percebido de acordo com as cartilhas dessa moderna e fundamentalista militância da positividade.

Nada de falar de coisas negativas, nada de pensar em coisas negativas e se, por nefasto (Ops! Palavra proibida) acaso, tivermos mesmo de falar em assuntos menos bons (nunca maus), menos fáceis (nunca difíceis) ou em desafios (nunca problemas), pois façamo-lo com ligeireza, com mensagens positivas e com post-its risonhos e coloridos pregados pelas paredes.

Há poucos dias, ao combinar uma sessão de workshop, foi-me de imediato pedida, pela entidade promotora, uma abordagem positiva e leve, para as pessoas se sentirem felizes.

Dois ou três dias antes, para uma participação num programa televisivo, recebi exactamente o mesmo pedido: optimismo e felicidade.

Ora eu, que até me considero uma optimista e, a ter de escolher, prefiro sempre ver o copo meio cheio, dou comigo a pensar se isto não pode, em última análise, converter-se numa espécie de desrespeito e banalização do sofrimento alheio, ou até, em casos mais extremos, conduzir a uma dupla infelicidade: aquela que resulta do acontecimento que nos faz sofrer e aquela que resulta do sentimento de desconformidade, por não sermos capazes de nos sentir felizes e gratos, conforme a prescrição social.

É a institucionalização colectiva da atitude daqueles amigos que, quando lhes contamos os nossos problemas, nos dão uma palmada nas costas e, com uma vigorosa gargalhada, respondem, antes de nos virarem as costas: “Oh, pá, anima-te, que isso não é nada!”

E nós, feios, gordos, velhos e macambúzios, lá retornamos às nossas cavernas de trevas, pessimismo e ingratidão, com um risonho e motivacional post-it, em cor de laranja fluorescente, colado na lapela do casaco, ordenando-nos que sejamos felizes.

Afinal, Murphy era um optimista!

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