O sabor agridoce de uma primeira vaga “menos má”

Mais do que nunca, precisamos de valorizar a ciência. Pois é o único saber que nos une. Mas a boa ciência precisa de tempo, o que faz com que neste momento seja muito frágil.

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Reuters/CAITLIN OCHS

“Não foi assim tão mau.” É o que o vento sopra por aí. “Não morreu assim tanta gente”, ou “os hospitais até se aguentaram”. Estas frases são extremamente perigosas. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) “segurou” esta primeira vaga à custa de muito sangue, suor e lágrimas.

Esta primeira vaga em Portugal foi, sem dúvida, menos má do que à nossa volta. “Menos má” é, ainda assim, um eufemismo, porque as pessoas foram trabalhar com medo e com vontade de chorar, os profissionais de saúde separaram-se das suas famílias, alguns até dos seus filhos. E, mais do que nunca, encontraram a exaustão física e psicológica e muitos estiveram com o pé mesmo em cima da linha do burnout.

Em muitos hospitais os Cuidados Intensivos duplicaram ou triplicaram a sua capacidade. Portanto, é falso e perigoso que se diga que os Cuidados Intensivos não transbordaram. O que é mais perigoso é não perceber que mais camas, ventiladores e outras máquinas podem arranjar-se, mas não há pessoas para tratar estes doentes. É muito específico e exigente trabalhar na medicina intensiva. Tivemos que adaptar à força e à pressa médicos, enfermeiros e auxiliares. Foram uma ajuda voluntariosa e extremamente valiosa, mas é uma adaptação! Se eu tiver que guiar um Fórmula 1 e alguém me explicar onde estão as mudanças e me for dando umas “dicas” por auriculares e eu guiar devagarinho, talvez consiga dar umas voltas. Mas se ficar sem orientações e tiver que guiar mais rápido, certamente que me vou matar. É perigoso não perceberem à custa de quê o SNS aguentou o primeiro impacto. Lá porque temos bombeiros, os fogos não deixam de ser uma catástrofe, é assim que têm de pensar.

Mais do que nunca, precisamos de valorizar a ciência. Pois é o único saber que nos une a todos. Mas a boa ciência precisa de tempo, o que faz com que neste momento seja muito frágil pensar que o país A se portou melhor que o país B... Só o tempo o dirá. Dizer que a Coreia do Sul é um exemplo de sucesso quando as pessoas quase não saem de casa, ou que a Suécia está pior que Portugal, tem a fragilidade de se tirar uma fotografia e se achar que se percebeu o filme. Isto ainda está no início. Parece-me também perigoso a pseudociência que tem sido feita nas redes sociais e media, por trituradores de números que os mastigam ao seu sabor.

A ciência faz-se de uma forma colegial e nunca por um único indivíduo sem contraditório. E, na minha opinião, é uma cobardia o linchamento público da dr.ª Marta Temido e da dr.ª Graça Freitas, que dão a cara pelas decisões que ninguém queria ter de tomar, e que são uma mistura de opiniões científico-técnicas dinâmicas e frágeis, como todas as outras áreas de gestão de um país, sabendo que a primeira vaga ter sido “menos má” é um sabor agridoce pela escassez de imunizados para a grande segunda vaga que há-de vir, e num momento em que já há muita gente sem emprego e à fome. E também por isso o mundo tem de voltar a girar.

Começamos a perceber o impacto das nossas decisões no mundo. Já se anunciou que há interrupção de campanhas de vacinação de várias doenças altamente mortíferas, com o medo da covid-19. Programas antimalária em stand-by estimam que vão morrer o dobro das crianças por este parasita, e a fome matará muitas mais. Tudo consequências do “sucesso” do lockdown e do “não foi assim tão mau!”.

Perceber o equilíbrio entre uma doença gravíssima que ainda vai matar muita gente ao nosso lado, as consequências devastadoras da economia na vida das pessoas, e olhar para o mundo à nossa volta com a humanidade que nos une é um exercício que precisa de muita humildade, carácter e competência.

Mais do que nunca: ciência, verdade e globalização da humanidade.

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