A cardiologia na pandemia covid-19: Como vai ficar a saúde do coração?

É fundamental manter a população bem informada pelas instituições com responsabilidade na saúde dos portugueses e transmitir a confiança e segurança necessárias aos doentes e profissionais de saúde.

Foto
PÚBLICO/Arquivo

A pandemia covid-19 veio impor a introdução rápida de modificações muito significativas na organização e funcionamento dos sistemas de saúde, nomeadamente com a necessidade de criar circuitos de funcionamento para doentes com teste positivo para pesquisa do coronavírus ou suspeitos de infecção, e para doentes com teste negativo, adaptando as enfermarias, serviços de urgência e unidades de cuidados intensivos, no que se refere à redistribuição de recursos humanos e condições logísticas, a uma realidade que se projectava de rápido crescimento.

A estas súbitas transformações, que ocorreram em hospitais públicos e privados, associaram-se medidas de contenção da propagação da infecção, como o confinamento, isolamento social, desinfecção frequente das mãos, utilização de máscaras e, também, o cancelamento da actividade electiva no âmbito dos cuidados de saúde.

Este último item veio condicionar, e muito, o atendimento prestado aos doentes em geral, mas com espectável repercussão na Cardiologia. Na realidade, a necessária e importante divulgação de que a população com factores de risco e doenças cardiovasculares, e outras comorbilidades (como a diabetes, a doença pulmonar obstrutiva crónica e a imunossupressão), representa um grupo particularmente vulnerável no contexto da covid-19, sobretudo se idosos, levou a que muitos destes utentes tenham vindo a evitar recorrer a urgências hospitalares no âmbito da sua patologia crónica.

A partir do mês de Março, registou-se uma queda superior a 50% na afluência às urgências (que atingiu níveis ainda mais significativos nos centros de saúde), levando a pensar que, se por um lado uma parte dos casos atendidos e tratados nas urgências não serão afinal problemas prioritários, por outro, muitos doentes com sinais de alerta para situações potencialmente graves ficaram em casa (as “pulseiras laranja e amarela” da triagem, muito-urgente e urgente, respectivamente, tiveram uma redução importante!).

Apesar de todos os centros hospitalares da rede da via verde coronária e da via verde do AVC continuarem a funcionar em regime de disponibilidade permanente, assegurando, com rápidas adaptações, regras de protecção adequada aos profissionais de saúde e doentes, tem-se verificado uma redução significativa do número de casos enviados para intervenção nas primeiras horas de evolução destes acidentes cardiovasculares, perdendo assim o maior benefício do tratamento. Isto leva-nos a perguntar: “Onde estão os enfartes e os Acidentes Vasculares Cerebrais?”

Além do risco inerente à perda da terapêutica apropriada e atempada, resultante do receio de recorrer aos hospitais, há que considerar que, nestas situações, não haverá lugar à medicação e cuidados subsequentes (de prevenção secundária), nomeadamente a programas de reabilitação, muito centralizados em estruturas apoiadas na fisioterapia, cuja actividade se mantém suspensa neste período. Além disso, a interrupção das consultas electivas (ainda que parcialmente substituídas pelo modelo da telemedicina), combinada com o confinamento domiciliário, e alguma (des)informação relativamente ao maior risco de complicações graves na infecção por este vírus em doentes sob medicação anti-hipertensiva e da insuficiência cardíaca com inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA) e antagonistas do receptor da angiotensinas (ARA2) — facto prontamente esclarecido pelas sociedades científicas como carecendo de evidência em estudos clínicos ou epidemiológicos —, pode ter contribuído para uma maior dificuldade na manutenção da medicação crónica utilizada nas doenças cardiovasculares, levando ao risco de descontrolo das mais variadas situações.

Para além de poder desequilibrar patologias que se encontravam compensadas, a infecção covid-19 também pode causar complicações cardíacas, que incluem a lesão aguda do miocárdio (com isquemia e enfarte), mesmo na ausência de doença aterosclerótica das artérias coronárias, a miocardite (processo inflamatório agudo do coração), as arritmias, fenómenos tromboembólicos ou mesmo a falência cardíaca (na fase da infecção com envolvimento multiorgão).

Apesar da inexistência de estudos consistentes com estratégias terapêuticas mostrando benefício significativo na eliminação do vírus e consequente impacto favorável na evolução clínica, têm sido utilizados vários medicamentos em regime de internamento, e em particular nos doentes em cuidados intensivos, que, por sua vez, também se associam a efeitos adversos potencialmente graves, em particular arritmias com o uso da cloroquina e hidroxicloroquina, justificando contínua vigilância do ritmo cardíaco na tentativa de prevenir complicações.

A recente publicação na revista da Ordem dos Médicos dum estudo avaliando a mortalidade global em Portugal durante a pandemia, mostrou um aumento dos óbitos no período de Março a Abril, comparativamente aos anos anteriores, envolvendo a população idosa, numa dimensão não explicada pelas mortes atribuídas à covid-19, designada por “mortalidade colateral”. No mesmo período, confirmou-se, como já assinalado, uma considerável redução do número de doentes que recorreram às urgências hospitalares. Acresce-se que este aumento da mortalidade ocorre depois duma sequência de 10 anos consecutivos com diminuição do número total de óbitos em Portugal.

Perante estes dados, as sociedades civil e científica devem desenvolver esforços no sentido de difundir à população a importância de se manter atenta a sintomas e sinais de alerta, como sejam a dor forte e persistente no peito (sobretudo se associada a náuseas, vómitos e dificuldade respiratória), no caso do enfarte do miocárdio, mas também à ocorrência de palpitações súbitas e rápidas, às tonturas recorrentes ou perda de conhecimento, e à perda de força envolvendo os membros, à alteração na fala ou aparecimento de “face descaída”. Neste contexto, deve ser accionado o 112 ou a linha SNS24, seguindo, de imediato, as instruções fornecidas, de modo a permitir o acesso urgente a uma unidade hospitalar com capacidade de realizar o tratamento apropriado. Esta regra é fundamental — não devemos (nunca) descurar os nossos doentes crónicos e as situações de emergência cardiovascular associadas a risco de mortalidade ou com potencial para importantes limitações biopsicossociais.

É fundamental manter a população bem informada pelas instituições com responsabilidade na saúde dos portugueses e transmitir a confiança e segurança necessárias aos doentes e profissionais de saúde, permitindo condições para o normal funcionamento do acesso às urgências e centros com capacidade para intervenção aguda no enfarte do miocárdio e AVC. Agora, com a actividade programada a ser retomada pelas unidades de saúde, é necessário tranquilizar a população para a importância de procurar os cuidados de saúde, nomeadamente para consultas, exames e tratamentos presenciais. As unidades de saúde implementaram as medidas de protecção adequadas e estão bem preparadas, com circuitos de funcionamento que garantem respostas de qualidade e em segurança.

Sugerir correcção