Basta a doença, não é preciso o estigma

Estamos conscientes de que seremos obrigados a conviver com um vírus que exige preocupações permanentes, mas nada nos obriga a condescender com a violação das normas de privacidade mais básicas.

É compreensível que as autarquias se preocupem com os seus munícipes, que reclamem a atenção e os meios necessários para os proteger e que até duvidem dos métodos estatísticos com que a Direcção-Geral da Saúde contabiliza o número de infectados nos seus relatórios. Em alguns casos, como vimos, os protestos faziam todo o sentido. Noutros, não.

Nos seus boletins diários, por exemplo, a autoridade nacional de saúde nunca disponibiliza informação desagregada quando o número de infectados numa dada localidade é inferior a três, para que estes não sejam identificados e objecto de eventuais discriminações.

Mas é precisamente isso que pode acontecer quando autarquias (com sede de protagonismo) publicam dados sobre o número de pessoas contaminadas em freguesias ou concelhos de dimensão mais reduzida, pois são facilmente reconhecidas mesmo que a sua identificação tenha sido omitida.

O que não é compreensível é que cidadãos com covid-19 deparem com os seus dados pessoais, de identificação e de contacto, publicados, sem qualquer consentimento, em páginas e contas nas redes sociais geridas pelos municípios, cuja divulgação já motivou várias queixas à Comissão Nacional de Protecção de Dados por se tratar de uma flagrante ilegalidade.

O que começou por ser um “vírus chinês”, como este novo coronavírus era designado por Donald Trump, e não só, com a consequente sinofobia, está a transformar-se num expedito pretexto para discriminar africanos na China ou muçulmanos na Índia. Esta exposição de quem é infectado, sem qualquer respeito pelo sigilo e pela privacidade, tem uma consequência óbvia: separar doentes e sãos, nacionais e estrangeiros.

Quando os doentes são os outros, o grupo que não faz parte de nós, estão criadas as condições para um reforço da estigmatização social, o que é tudo menos profiláctico, e que pode ser apenas mais uma antecâmara do racismo e da xenofobia.

Estamos todos conscientes de que seremos obrigados a conviver por demasiado tempo com um vírus que exige permanentes preocupações sanitárias, mas nada nos obriga a condescender com a violação das normas de privacidade mais básicas, com rastreios por georreferenciação sem conhecimento ou autorização, ou com a divulgação de listagens de contaminados. Já basta a doença, não é preciso nem o estigma nem a intrusão.

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