A sabedoria de Salomão em tempo de transição

Rejeitemos as palas do dualismo e ousemos aspirar à sabedoria de Salomão nesta fase de transição da clausura sanitária para a mobilidade económica.

Toda a visão dicotómica da realidade é empobrecedora. E torna-se particularmente redutora quando se aplica aos valores, induzindo à escolha de um por exclusão do outro. Quando a nova realidade social que vivemos em tempo de pandemia é problematizada em termos alternativos, torna-se necessariamente falaciosa e, ainda mais grave, profundamente equívoca das soluções a procurar e das decisões a tomar. Uma pergunta mal formulada é certeza de uma resposta falhada.

E, todavia, é esta visão tão simplista quanto enganadora da sociedade que tem dominado o espaço público. Primeiro interrogava-se sobre a dicotomia autonomia individual ou responsabilidade social, depois sobre a saúde púbica ou a economia nacional, depois também sobre a emergência sanitária ou a democracia política…

Vem-me à memória a narrativa do rei Salomão que, perante duas mulheres que reclamavam como seu um bebé recém-nascido, o manda cortar em dois para o distribuir pelas duas mulheres, assim descobrindo a verdadeira mãe, aquela que prefere abdicar do filho vivo a receber parte do cadáver. A moral do Julgamento de Salomão não é a de simplesmente optar por uma das mulheres, o que efectivamente não fez; nem tão pouco a de dividir pelas duas o que ambas reclamavam, o que também não fez. A lição a reter é a de que uma decisão sábia é também criteriosa e que para tal importa ter conhecimento, mas também sensibilidade para o aplicar adequadamente à realidade concreta sempre singular, sempre diferente. O Julgamento de Salomão personifica sabedoria prática ou prudência, isto é, a capacidade de “perceber no real as exigências morais”.

Não perguntemos, pois, se Salomão, o rei sábio, escolhe entre a autonomia ou a responsabilidade, entre a saúde ou a economia, entre a emergência ou a democracia; não acreditemos, tão pouco, que a decisão salomónica seja dividirmo-nos entre ambas. A sabedoria reside no conhecimento da necessidade de ambas e na capacidade de as salvaguardar no contexto único que vivemos.

Não aceitemos escolher entre a autonomia e a responsabilidade, até porque estes valores éticos não são contraditórios, mas complementares: é a responsabilidade de todos que permite a autonomia de cada um, devendo esta exercer-se responsavelmente para que todos gozem de autonomia.

Não aceitemos escolher também entre viver em democracia ou num período de estado de emergência. É possível conciliar ambas as realidades se não confundirmos meios excepcionais para manter a ordem pública numa situação excepcional de pandemia com a finalidade democrática de providenciar a todos protecção social.

Não aceitemos escolher ainda entre a Saúde e a Economia que, aliás, se reforçam mutuamente. É uma economia forte que pode dispor de serviços de saúde de qualidade, sem os quais a actividade económica se ressente. Afinal, mesmo no início da eclosão da crise sanitária, com a priorização clara da saúde, manteve-se a protecção possível do tecido produtivo.

Esqueçamos, pois, discursos dicotómicos, afuniladores de opções, que hoje tendem a regressar, consequência desta nossa mentalidade colectiva bipolar que, da valorização hegemónica da saúde com o afundamento compulsivo da economia, reage agora num desastroso movimento pendular, clamando pela libertação da economia e secundarização da população vulnerável. Rejeitemos as palas do dualismo e ousemos aspirar à sabedoria de Salomão nesta fase de transição da clausura sanitária para a mobilidade económica.

Não há modelos testados, mas há conhecimentos e experiências que se vão somando e que devemos ir ajustando à nossa realidade. E há, sobretudo, condições exigíveis para a fase de transição. A primeira é proteger. Por exemplo, sem a distribuição gratuita de máscaras ou sem a disponibilização permanente de desinfectante nos espaços públicos não teremos o mínimo de protecção assegurada. A segunda é monitorização. Diria que sem testar previamente todos os que trabalham presencialmente e sem controles regulares de temperatura não teremos o mínimo de dados necessários para avaliação da situação epidemiológica do país. A terceira é comunicar. E acrescentaria que sem informação factual e objectiva, rigorosa e coerente não teremos o mínimo de segurança para retomar o quotidiano. Na fase de transição, que em breve se iniciará, só uma protecção adequada, uma monitorização regular e uma comunicação transparente construirão a confiança das pessoas e permitirão também que abandonem um modo de pensar e agir dicotómico.

A confiança será o fio do pêndulo numa posição sustentável, será a prova do afastamento equidistante das dicotomias, será a evidência da sabedoria de Salomão.

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