A incerteza sobre o novo mundo que se prenuncia

Onde houver soberania popular, ou seja, democracia, há uma réstia de esperança de que algo mude para melhor. Mas profetizar um admirável mundo novo de justiça e humanidade é uma utopia como tantas outras que se esboçaram em tempos de crise como a que hoje vivemos.

Ao pedido de apoio para acudir às necessidades dos sistemas hospitalares inundados com pacientes infectados com o novo coronavírus, milhares de médicos e enfermeiros de Portugal e de outros países europeus responderam com o seu altruísmo e disseram sim. Os voluntários para apoiar idosos isolados ou vizinhos dispostos a ajudar vizinhos mais fragilizados deram origem a abundantes casos de solidariedade. Muitas empresas empenharam-se em ajudar os seus trabalhadores ou a comunidade. A partilha do medo do vírus que não conhece raças, nações, estatutos sociais ou culturais parece ter mitigado a sensação de que as fracturas sociais reveladas em movimentos como o dos “coletes amarelos” eram irreversíveis. As políticas de apoio aos desempregados apareceram com força em todo o lado. No Reino Unido elogiam-se os estrangeiros que estão na linha da frente no combate à doença.

Sinais como estes legitimam a convicção de muitos sobre o prenúncio de um novo tempo, um tempo mais solidário, mais altruísta, mais sensível aos problemas dos outros, mais capaz de compreender que a diversidade racial, étnica ou nacional é uma riqueza, não uma ameaça. Um choque como o que estamos a viver força-nos a questionar tudo, a constatar que, como agora se diz, afinal éramos felizes e não sabíamos, ou a reparar que no culto do indivíduo tanto pode estar a semente da liberdade como o vírus que corrói o sentimento de pertença a uma comunidade. Mas se é possível que o pesadelo mundial do vírus nos leve ao reencontro com os valores de um humanismo perdido, se o modelo económico e social pode recuar décadas e corrigir os excessos de um capitalismo que se centrou no ego dos CEO e dos accionistas e esqueceu a razão do seu triunfo histórico – a capacidade de redistribuir e disseminar o bem-estar pela sociedade  –, não há razões para acreditar que o egoísmo perverso do Estado se regenere com esta crise.

Nada garante que líderes arrogantes, como Trump, boçais e patéticos, como Bolsonaro, iliberais, como Orbán, despóticos, como Maduro, ou alheios ao valor da liberdade, como Xi Jinping, percam poder com a sua lógica do “nós contra os outros”. Nada nos indica que a União Europeia se reerga nesta crise à luz da inspiração da geração do pós-II Guerra que a erigiu. Ditadores como Assad permanecerão iguais a si mesmos. Onde houver soberania popular, ou seja, democracia, há uma réstia de esperança de que algo mude para melhor. Mas profetizar um admirável mundo novo de justiça e humanidade é uma utopia como tantas outras que se esboçaram em tempos de crise como a que hoje vivemos.

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