Covid-19: FAO alerta que proteccionismo pode levar a escassez de alimentos

Alguns dos grandes produtores mundiais de cereais e arroz estão a controlar as exportações. Receia-se também falta de mão-de-obra para a época das colheitas.

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Milhares de pessoas vendem e compram num mercado ao livre na Colômbia LUSA/Carlos Ortega
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Distribuição de alimentos em Nairóbi, no Quénia Reuters/BAZ RATNER

Por enquanto não tem faltado comida, a produção continua e o abastecimento tem sido assegurado. Mas os esforços globais para travar o avanço do novo coronavírus podem vir a afectar a distribuição de alimentos e a aumentar o número de pessoas que sofrem de fome.

O aviso foi lançado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), que alertou para o risco de alguns países, sobretudo os grandes produtores, tomarem medidas proteccionistas, restringindo as exportações de bens essenciais. “Todas as medidas contra o comércio livre serão contraprodutivas”, disse, no final de Março, ao The Guardian Maximo Torero, da FAO, avisando que, se isso acontecer, pode haver falta de alimentos em breve.

Os cereais são um dos maiores problemas. A produção mundial está concentrada em relativamente poucos países. Dados citados pelo Food Policy Research Institute (IFPRI) indicam que a Rússia, a União Europeia, os Estados Unidos, o Canadá e a Ucrânia representaram, em conjunto, 75% das exportações mundiais de trigo em 2019/20.

A Ucrânia já suspendeu a exportação de trigo até 1 de Julho para proteger o seu mercado interno de uma eventual subida de preços do pão devido ao aumento da procura externa. A Rússia decidiu igualmente limitar para sete milhões de toneladas as suas exportações de cereais entre Abril e Junho. E o Cazaquistão impôs limites máximos às exportações de trigo, açúcar, sementes de girassol, assim como de batatas e cebolas.

O arroz – que, juntamente com o trigo, fornece cerca de um terço das calorias consumidas no mundo – representa também um problema, por estar concentrado na Ásia: 75% é proveniente de cinco países, com a Índia a representar um quarto desse total. Para já, o Vietname (16% do mercado mundial) suspendeu novas licenças de exportação. Mas, ainda de acordo como IFPRI, as reservas da Índia estão elevadas e as perspectivas para a colheita deste ano são boas.

 A luta contra a covid-19 pode, no entanto, afectar também a produção por eventual falta de mão-de-obra. Na Índia, os trabalhadores sazonais, a maioria dos quais está concentrada na agricultura, foram obrigados a regressar aos seus estados de origem para evitar a propagação da pandemia.

Crise de mão-de-obra

E em várias zonas do mundo a colheita de alguns dos mais importantes frutos e vegetais, em muitos casos dependente de mão-de-obra vinda de outros países, vai começar em breve. “Precisamos de políticas para garantir que estes trabalhadores podem cumprir as suas tarefas”, disse Torero ao Guardian. “Protejam as pessoas, mas precisamos de trabalhadores.”

As grandes multinacionais da indústria alimentar como a Unilever, a Nestlé e a PepsiCo juntaram-se ao apelo da FAO e de várias associações de agricultores, escrevendo uma carta aos líderes mundiais pedindo que mantenham as fronteiras abertas ao comércio e à circulação de bens alimentares. Os signatários da carta, citada pelo Guardian, admitem um cenário em que o número de pessoas que sofrem de fome no mundo duplique e apelam para que sejam feitos todos os esforços para evitar que a pandemia de covid-19 “se transforme numa crise alimentar e humanitária global”.

Mas, mesmo com as fronteiras abertas, a circulação enfrenta outras dificuldades. A maior parte dos alimentos são transportados por via marítima e muitos portos mundiais estão a impedir a entrada de grandes navios de transporte de contentores, O transporte aéreo foi igualmente afectado. “As operações de transporte de passageiros foram reduzidas de forma tão drástica que o sistema não tem capacidade para dar resposta mesmo aos níveis mais reduzidos de transporte de mercadorias”, explicou Alexandre de Juniac, administrador da Associação Internacional de Transportes Aéreos, citado pela CNN Business.

Em muitos casos são as dificuldades logísticas que impedem os alimentos de chegar às pessoas. Nos EUA, produtores que lidam com alimentos altamente perecíveis, como vegetais ou leite, têm-se visto obrigados a deitá-los fora por não terem capacidade para os armazenar. Os prejuízos são já calculados em milhares de milhões de dólares.

E em África?

Até agora, aparentemente, a covid-19 não atingiu os países africanos da mesma forma que atingiu a Europa e os Estados Unidos (15 mil casos confirmados no continente, segundo a OMS), mas, se tal acontecer, será uma “calamidade”, admite Pedro Vicente, especialista em política do desenvolvimento e director científico do Novaafrica, centro de investigação da Nova School of Business & Economics.

Em países onde “falta equipamento de protecção” e há uma total “incapacidade de testagem”, assim como de obrigar as pessoas a ficarem em confinamento, os riscos são muito grandes, mas as incertezas também. “Não sabemos ainda como é que o vírus se comporta em face do calor e da humidade”, diz, sublinhando, por outro lado que “a estrutura demográfica [em África] não tem nada a ver com a europeia, é muito mais jovem, e isso pode dar alguma esperança”.

No que diz respeito à alimentação, o cenário mais preocupante é o das zonas que estão completamente dependentes da ajuda humanitária. Esta pode ser afectada, e aí “tem que haver uma coordenação internacional muito forte”, diz Pedro Vicente. Por outro lado, em muitos dos países africanos (e cita como exemplo o caso da Guiné Bissau) “as pessoas são bastante auto-suficientes e menos dependentes do Estado” para se alimentarem.

Esta agricultura de subsistência é um factor que garante alguma resiliência, sobretudo nas zonas rurais. Já os centros urbanos são, neste aspecto, mais vulneráveis. “Maputo, por exemplo, depende bastante das importações da África do Sul”, mas, para já, não há sinais preocupantes relativamente ao abastecimento de bens essenciais.

Pedro Vicente sublinha a importância de duas medidas adequadas à realidade africana: perante a dificuldade de realizar testes, propõe a difusão e recolha de informação sobre o estado de saúde da população “através de um instrumento simples, que pode ser a rádio”. E, no caso de a situação económica se agravar, as “transferências de dinheiro para as pessoas, sem condições” – um instrumento que já foi aplicado anteriormente e que não depende de tecnologias sofisticadas, podendo ser feito por telemóvel.

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