O impossível regresso ao passado

Estamos agora a aproximar-nos do final destes dias de reclusão, de acordo com os sinais que vão surgindo de um maior controle na expansão epidemiológica. Mas não tenhamos ilusões, o vírus permanece entre nós sem que haja imunidade de grupo, vacina eficaz ou um tratamento infalível (apesar da investigação em curso e de alguns ensaios já a decorrerem, numa e noutra área).

Não estamos numa ficção colectiva da qual seja possível retirar-nos sem dano, ou num pesadelo do qual nos seja possível sair, bastando para isso acordar. Este tempo de confinamento terá fim, mas terá consequências.

O que ainda nos confina em casa é um vírus que deu a volta ao mundo em quatro meses e é mais mortal do que se imaginava. O seu impacto no quotidiano é brutal, com um enorme cortejo de mortes a expor as nossas debilidades e as fraquezas das estruturas de saúde pública. O vírus conseguiu ainda torcer as regras de uma economia assente no binómio produção/consumo, e obrigou-a a ter de parar. A consequência imediata mede-se em desempregados aos milhões.

A progressão do vírus pelas maiores economias expôs os limites do liberalismo e da globalização, mas permitiu ao capitalismo digital uma nova expansão, com o teletrabalho, as compras online, as possibilidades de comunicação e as ofertas de lazer. Em muitos países europeus a sociedade teve de se reinventar em novas regras, e muitas empresas reconverteram a produção para responder à urgência de máscaras, de ventiladores, de gel hidroalcoólico e de equipamentos de protecção hospitalar. 

Estamos agora a aproximar-nos do final destes dias de reclusão, de acordo com os sinais que vão surgindo de um maior controle na expansão epidemiológica. Mas não tenhamos ilusões, o vírus permanece entre nós sem que haja imunidade de grupo, vacina eficaz ou um tratamento infalível (apesar da investigação em curso e de alguns ensaios já a decorrerem, numa e noutra área).

É neste cenário que se equaciona o processo de “desconfinamento”, um certo retorno ao quotidiano e à economia. Há um toque a rebate a expor com evidência uma hecatombe, uma recessão mundial como nunca vista, como refere o FMI. E aos riscos das falências e do desemprego soma-se o espectro de uma crise alimentar, de que o aumento exponencial dos preços do arroz e do trigo é já um exemplo, pela dificuldade na recolha em vários países asiáticos, a que se junta a suspensão das exportações.

Neste tempo de gestão política, as variáveis para o “desconfinamento” são muitas. Há que ter em conta o que se conhece do vírus e, embora já se saiba bastante, ele encerra ainda largas zonas de mistério. Os pareceres de médicos e de epidemiologistas são, por isso, incontornáveis, assim como a avaliação da capacidade dos serviços de saúde. É necessário ainda ter em conta as expectativas dos cidadãos para o seu regresso aos dias futuros com uma mínima margem de esperança e segurança. Das modalidades em cima da mesa nenhuma é a ideal.

Se o manter da distância social e dos hábitos de higiene é absolutamente inquestionável, o uso de máscaras torna-se agora prática aconselhável a todos, após dias a negar-se que assim fosse. As análises para um rastreamento mais lato surgem como boas práticas para uma detecção rápida e imediata, seguida de medidas de quarentena a quem for testado positivo, para se evitar a continuação da propagação do vírus. Admite-se ainda, pelo menos nalguns países, o uso de um rastreamento através dos dados dos telemóveis, uma monitorização do itinerário dos cidadãos para alertar todas as pessoas que estiveram em contacto com alguém que surgiu positivo ao vírus. A decisão tem muito de polémico por ir contra liberdades públicas fundamentais, riscos de se atentar à vida privada, e o que isso implica de perda da liberdade em nome da segurança.

Mesmo com todas estas medidas, nada garante o afastamento de uma segunda vaga, com mais uma série de doentes a inundar os hospitais e um possível novo confinamento geral a ser decretado. O director da OMS já alertou que “levantar as restrições muito rapidamente poderá acarretar um ressurgir mortal” da pandemia, e os custos poderão ser mais devastadores ainda do que os actuais para a economia. O exercício da política nunca foi, por isso, tão arriscado e tão às apalpadelas.

Em França, por exemplo, anuncia-se o 11 de Maio como a data para o fim do período de confinamento, mas basta escutar o seu Ministro da Educação para se perceber que tudo está ainda em aberto, desde a obrigatoriedade do porte de máscaras para os alunos à recusa dos pais em deixar os filhos regressarem à escola, e até mesmo a uma eventual abertura faseada, tendo em conta as idades dos alunos ou tendo por base estabelecimentos de ensino e regiões. Em resumo: nada está definido - sendo que uma maioria de franceses não apoia a ideia de ver os seus filhos voltar aos estabelecimentos escolares, de acordo com uma sondagem publicada no Le Figaro.

Esta é uma altura em que precisamos de nos reinventar, “a começar por mim próprio”, como referiu o presidente francês, espécie de mea culpa que o leva agora a regressar a alguns valores de esquerda, como, aliás, sucede com muitos outros governantes. São vários a admitir agora o inimaginável há menos de um mês, e quase nenhum rejeita hipóteses de nacionalizações ou participações públicas em empresas, quase ninguém está agora preocupado com dívidas ou défices, e são muitos os que olham como nunca para a importância das pequenas profissões tornadas agora vitais, mas com salários imorais.

Se o objectivo do “desconfinamento” é agora o de minorar os danos na economia, não se pode correr o risco de um regresso a uma sociedade profundamente desigual e de consumo desenfreado dos recursos do planeta. Se tal vier a acontecer, “o caos onde vivemos não será nada comparado com o que poderemos ter de enfrentar, entregues às consequências do perigo climático”, como escreveu o activista ambiental Cyril Dion no Le Monde. E basta aqui recordar os sucessivos relatórios da generalidade da comunidade científica a esbarrar na lógica de um capitalismo insustentável ecologicamente, com a sua vertente ultraliberal e o seu discurso negacionista a rejeitar em permanência os regulamentos para preservar o ambiente e o clima da Terra. Como referiu no PÚBLICO o filósofo português José Gil, poderemos estar a chegar a “um patamar irreversível”. Não é, pois, possível não deixar de equacionar nesta fase a urgência de uma estratégia reformista que transforme a teoria económica dominante numa bioeconomia.

Esta é pois a altura em que se deve reequacionar a ideia de uma sociedade assente no pressuposto filosófico de que o ser humano é estruturalmente egoísta e só age no seu próprio interesse, mas retomar e reflectir em todo o pensamento que liga a felicidade humana ao altruísmo, essa ideia de que é possível construí-la contribuindo para a felicidade dos outros.

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