Pandemia, crise, democracias e ditaduras

Se concordarmos com este esboço de reconstituição e análise, se pensarmos que as respostas à “Crise de 2008” foram, muitas vezes, globalmente ineficazes e injustas, não poderemos deixar de defender que, face à actual pandemia e às respectivas sequelas sociais e económicas, será mais eficaz e mais justo adoptar uma estratégia semelhante à do pós-Segunda Guerra Mundial.

Começo por agradecer àqueles que, em Portugal e nos outros países, enquanto cidadãos eleitos ou na qualidade de profissionais, intervêm directa e efectivamente para atenuar ou para resolver problemas gerados pela actual pandemia. Saúdo, igualmente, todos os que, em termos de saúde ou no plano económico e social, sofrem as terríveis consequências desta pandemia. Enquanto historiador e professor de história contemporânea, limito-me, no presente texto, a contribuir para a reflexão sobre escolhas colectivas que teremos de fazer quando for superada a presente situação de emergência sanitária.

Recorrendo a projectos de investigação historiográfica e de outras ciências sociais já concretizados e divulgados — ou seja, a esforços de reconstituição e contextualização, comparação e análise que avalio como objectivantes —, é possível antever possíveis cenários futuros através da observação do modo como Portugal, a Europa e o Mundo lidaram com o pós-Primeira Grande Guerra e com o pós-Segunda Guerra Mundial. Lembro que a pandemia de “Gripe Pneumónica” (ou “Gripe Espanhola”) — 1918 a 1920, com entre 50 e 100 milhões de mortos — coincidiu tanto com a etapa final da Primeira Grande Guerra como com o imediato pós-guerra.

Proponho que se considere que os anos 1919 e seguintes foram marcados pela hegemonia, à escala mundial, de concepções e de práticas fundadas em lógicas de “egoísmo irracional”. Isto é, assistiu-se à reprodução ou à introdução generalizadas de medidas de cariz unilateral e proteccionista ou autárcico, socialmente segregacionista e/ou colonialista, xenófobo e racista. Mesmo a Sociedade das Nações, organização internacional fundada por países com regimes demoliberais, potencialmente multilateral e multivectorial, acabou por ter grande parte das suas potencialidades anuladas em nome de nacionalismos isolacionistas, defensivos ou agressivos.

Depois do sofrimento causado pela Primeira Grande Guerra e pela pandemia de “Gripe Pneumónica”, o Tratado de Versalhes e outros Tratados visaram, sobretudo, limitar os países derrotados (antes de mais a Alemanha); os EUA optaram, em termos geoestratégicos, pelo “isolacionismo continental” e a Rússia — depois URSS — assumiu o figurino de regime totalitário comunista. A permanência do predomínio da teoria económica marginalista abriu as portas ao corporativismo e ao estalinismo; à hiperinflação alemã da primeira metade da década de 1920 seguiu-se a “Crise de 1929”. A radicalização ideológica e política no âmbito nacional (com destaque para a ascensão dos fascismos) levaram ao irredentismo e ao militarismo; a violência de massas à escala nacional e os conflitos militares localizados evoluíram para a Segunda Guerra Mundial e para o Holocausto.

Num sentido — parcialmente — oposto, os anos de 1944 e seguintes conheceram a supremacia, pelo menos nos países capitalistas desenvolvidos ou de desenvolvimento intermédio e sob a liderança dos EUA, do “egoísmo racional”. Ou seja, verificou-se a adopção de soluções de natureza multilateral e promotoras da integração económica. Baseadas na teoria económica keynesiana, as referidas políticas implicaram a implementação do modelo de “Estado-Providência” e a atenuação das desigualdades sociais, a condenação da xenofobia e do racismo, o reconhecimento do direito à autodeterminação e da necessidade de estratégias de apoio ao desenvolvimento.

Ainda em plena Segunda Guerra Mundial, o Reino Unido aprovou o Plano Beveridge (1943) e os EUA promoveram a realização das Conferências de Filadélfia (1944), de Bretton Woods (1944) e de São Francisco (1945). A partir do fim do conflito, foram instituídas a ONU e as respectivas agências especializadas; os EUA dinamizaram a criação da OECE e concretizaram o Plano Marshall, bem como um programa de apoio à reconstrução do Japão; a CEE, a EFTA e a UE garantiram níveis substanciais de integração económica e alguns apoios específicos ao desenvolvimento, tanto dos países europeus mais semi-periféricos, como, embora em menor grau, de países periféricos de outras zonas do Mundo.

Mesmo tendo em conta, quer as limitações decorrentes das características dos regimes comunistas (ditaduras totalitárias), quer as sequelas da opção dos EUA e das potências intermédias do “Bloco Ocidental” no que concerne aos países capitalistas subdesenvolvidos — recusa da teoria económica estruturalista, crescimento económico dependente e com manutenção de desigualdades sociais extremas, ditaduras tendencialmente totalitárias no seguimento de golpes militares —, as décadas de 1950 a 1980 foram, assim, uma conjuntura inabitual de desenvolvimento e de melhoria das condições de vida, de multilateralismo e de consensualização/estabilização de regimes democráticos, de pluralismo cultural e de governação menos discriminatória da multiculturalidade.

Se concordarmos com este esboço de reconstituição e análise, se pensarmos que as respostas à “Crise de 2008” foram, muitas vezes, globalmente ineficazes e injustas, não poderemos deixar de defender que, face à actual pandemia e às respectivas sequelas sociais e económicas, será mais eficaz e mais justo adoptar uma estratégia semelhante à do pós-Segunda Guerra Mundial. Numa situação de emergência social e económica generalizada, a transferência negociada de recursos em favor dos indivíduos e dos países com maiores dificuldades é fundamental para os próprios mas, também, para os indivíduos abastados e para os países desenvolvidos.

Caso não pretendamos observar uma nova catástrofe social, política e geoestratégica, a informação e os argumentos aqui sumariados (fruto da actividade profissional de historiadores e de outros cientistas sociais) devem ser mais tidos em consideração. Considerados, nomeadamente, pelas “sociedades civis”, pelos aparelhos de Estado e pelos sistemas políticos da União Europeia, dos EUA e do Japão, da Alemanha e do Reino Unido, da Holanda e da Finlândia, da Polónia e da Hungria, do Brasil e do México, da Índia e do Paquistão — mesmo da China e da Rússia, do Irão e da Turquia, etc.

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