Televisão: Jane F. por Jane F.

Em streaming na HBO, um excelente documentário sobre uma das actrizes icónicas da nova Hollywood, e sobre as inseguranças que se escondiam por trás da mulher moderna e corajosa

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Jane Fonda? A “Hanoi Jane” que foi alcunhada de traidora por se opôr à guerra do Vietname e ter visitado o “inimigo” vietcongue? A filha de Henry Fonda, um dos maiores ícones da Hollywood clássica, que se tornou numa das grandes actrizes americanas dos anos 1970 conciliando aclamação crítica e sucesso público em filmes como Klute, Julia, O Regresso dos Heróis ou O Síndroma da China? A mulher que sempre achámos que sabia muito bem o que estava a fazer e que tinha a força e a coragem das suas convicções, a mulher moderna e libertada dos anos da libertação e do feminismo?

Pois, essa Jane Fonda era uma criação.

Não uma personagem, atenção, mas uma fachada, uma imagem que Jane projectava sem forçosamente ter consciência disso na altura. É isto que a própria diz, perante a câmara de Susan Lacy, em Jane Fonda in Five Acts, produzido para a HBO. Um documentário que baloiça no fio da navalha entre sessão de terapia e registo biográfico, mas que tem o bom senso de olhar para a carreira da actriz como um todo indissociável da sua pessoa, e de não se limitar a alinhar excertos de filmes e entrevistas de familiares, amigos e até ex-maridos de modo pacificamente cronológico.

Há uma razão para Jane Fonda in Five Acts estar dividido em cinco “actos” – os quatro primeiros são os homens da sua vida, correspondendo largamente aos quatro momentos da sua carreira. O pai, Henry; o primeiro marido, o cineasta francês Roger Vadim (1965-1973); o segundo, o activista americano Michael Hayden (1973-1990); e o terceiro, o magnata Ted Turner (1991-2001). Quatro homens para pontuar uma busca de Jane, ela própria, enquanto pessoa: que cresceu com cada nova relação e cuja postura no mundo e perante o mundo foi criada muito mais por reacção às presenças masculinas na sua vida.

Um pai ausente, distante, e uma relação perturbada com a mãe bipolar que se suicidou ainda Jane era muito nova. Um momento de starlet ingénua em finais dos anos 1960, um casamento com um Roger Vadim libertário no erotismo mas convencional na sua visão do mundo; um filme que muda tudo – Os Cavalos Também se Abatem, de Sydney Pollack, onde pela primeira vez ela se sente actriz de corpo inteiro – e uma necessidade de tomar partido e usar a sua celebridade para tornar a América melhor; o seu célebre método aeróbico como maneira de ganhar dinheiro para reinvestir em programas de apoio aos necessitados, a produção de filmes como modo de trazer ao de cima as questões que a apaixonavam (o nuclear em O Síndroma da China, a desigualdade laboral entre sexos em Das 9 às 5, os veteranos do Vietname em O Regresso dos Heróis) mas também para manter o lar à tona…

Em cada momento, Jane moldava-se não apenas para si, mas sobretudo para o seu marido da altura, ciente do seu estatuto. Chegando ao ponto de deixar de fazer filmes durante 15 anos para se dedicar a gozar a vida com Ted Turner, o homem que criou a CNN.

E o quinto dos cinco actos do título? É Jane, ela própria, hoje, no século XXI, aos 80 anos de idade (o documentário é de 2018), depois do seu regresso aos ecrãs em 2005, culminando na popularidade do seu (re)encontro com Lily Tomlin na série da Netflix Grace & Frankie (seis temporadas e uma sétima a caminho). Que se afadiga a provar que a vida não acaba quando se entra na terceira idade. Jane está finalmente em paz consigo própria e com a sua vida, com o pai ausente (A Casa do Lago, o último filme de Henry no grande ecrã, foi a reconciliação possível) e com a mãe que a deixou cedo demais.

E agora vive para si própria. E, apesar de todas as fachadas e de todas as imagens, o que fica de Jane Fonda in Five Acts é que Jane nunca deixou de ser si própria. Sempre teve a força das suas convicções, sempre mergulhou a fundo para aquilo que estava a fazer, sempre foi Jane. A mesma Jane.

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