Pobre Homo Deus

Quando a Natureza se revolta contra o Homem, o melhor é apaziguá-la com sacrifícios rituais ou, na nossa época e na nossa cultura, incumbir a medicina e os políticos de evitarem demasiadas mortes. O Homo Deus só existe na cabeça de Yuval Noah Harari. E é um Homo Deus aflito.

Depois de, num primeiro livro, se ter debruçado sobre o Sapiens: História Breve da Humanidade (que não li), Yuval Noah Harari avançou triunfante para um segundo, Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã​ (que li de fio a pavio há mais de um ano).

O título – Homo Deus – é arrojado, provocador e algo megalómano. Harari, sem pretender propriamente prever o futuro, nem por isso se coíbe de expor com detalhe as várias “possibilidades” (sic) que se perspectivam perante o homem do futuro. O Sapiens, depois de se ter convertido no senhor do Universo graças ao domínio que estabeleceu sobre as restantes espécies animais, teria um derradeiro objectivo para alcançar no séc. XXI: transmutar-se em Deus. Esta transmutação assinalaria o termo da História da Humanidade tal como a conhecemos.

No cerne da explicação sobre o porquê da supremacia alcançada pelo Sapiens está a “cooperação” : nenhuma outra espécie animal desenvolveu a capacidade de “cooperar flexivelmente” para fins variáveis de interesse comum: as formigas também cooperam, mas apenas para carregar comida. Tal capacidade surgiu à medida que a população se adensava e estabelecia contactos regulares, geradores de interdependência. O isolamento prevalecente na Idade da Pedra foi superado pelo sedentarismo e concomitante invenção da agricultura, há uns 15.000 anos. Manifestou-se, então, aquela capacidade de cooperar flexivelmente que distingue o Sapiens do restante reino animal e o elevou a Senhor do Planeta.

Com o desenvolvimento económico e social; com a descoberta do Mundo; com os primeiros passos da Ciência; com a revolução científica do século XVII; com a revolução industrial; com a ampliação da economia-mundo, a cooperação intensificou-se constantemente – e o esplendor dos extraordinários dotes humanos foi-se tornando cada vez mais extasiante. Até que, chegados à segunda metade do séc. XX, a ciência computacional, desenvolvida por equipas que trabalhavam em redes internacionais, começou a revolver velhos hábitos e, no séc. XXI, transformou completamente o nosso modo de vida. Nunca, na história da Humanidade, tantos cientistas investigaram ao mesmo tempo. Nunca, na história da Humanidade, tantas pessoas comunicaram a toda a hora através dos telemóveis, da internet, das redes sociais. O progresso científico processa-se a um ritmo vertiginoso – em todos os campos da Ciência, com destaque para a Biologia e, por conseguinte, para a Medicina. Até termos atingido o ponto em que a própria subjectividade, que tradicionalmente constituía a principal fonte ou o critério do desejável, acabou sendo posta em causa. Porquê? Porque “organismos são algoritmos”.

“Um algoritmo é uma série metódica de passos que pode ser usada para fazer cálculos, resolver problemas e alcançar decisões. Um algoritmo não é um cálculo particular, mas sim o método que se segue quando fazemos o cálculo.” (Homo Deus) Tal método não difere da forma como seguimos uma receita culinária. De facto, desde sempre que a nossa cabeça funciona segundo algoritmos, quer dizer, segundo uma programação. Mas o que tudo mudou foi a descoberta de que tínhamos instrumentos – os computadores e a Web – capazes de idealizar e programar algoritmos infinitamente mais inteligentes do que o cérebro humano! Agora sim, chegou a hora da subordinação do homem à máquina. Para que esta demissão humana se consume, o bem mais importante, hoje em dia, é a informação – os dados e o respectivo processamento por... computador. Em nada conta para aqui a nossa consciência, aliás já dissociada da inteligência. Em nada conta para aqui a nossa sensibilidade emocional e espiritual. Os organismos são algoritmos e estes não possuem nem sentimentos, nem consciência, nem espírito. O critério é agora não o do Bem, do Belo e do Justo, mas o da eficácia, da utilidade e da funcionalidade. A evacuação do espírito, da consciência e da emoção estética não parece perturbar Harari, fascinado pela empolgante visão de um futuro Homo Deus.

Pensa-se geralmente que o capitalismo, o mercado livre, a democracia, o império das Leis ou os Direitos Humanos triunfaram porque eram coisas boas. Engano nosso: triunfaram porque intensificaram e aperfeiçoaram o sistema global de processamento de dados (global data-processing system). Mas corremos um risco. Se, como muitos acreditam, a Humanidade aprofundar a cooperação e criar um sistema de processamento de dados ainda mais eficiente, “a Internet-de-Todas-as-Coisas” (the Internet-of-All-Things), então o Homo Sapiens será a vítima da sua própria extraordinária proficiência, e o seu desaparecimento da face da Terra esculpirá o glorioso pórtico pelo qual uma nova espécie humana, o Homo Deus, fará a sua entrada triunfal no planeta. Para Harari, esta possibilidade já se perfila no nosso horizonte: Uma Breve História do Amanhã é o (modesto) subtítulo do Homo Deus.

O filósofo, ou candidato a filósofo, tornou-se uma espécie de guru mundial. Toda a gente em toda a parte o solicita para escutar as suas prescientes especulações. Há dias, o jornal PÚBLICO concedeu-lhe várias páginas para que o guru comentasse a actual pandemia do coronavírus. O que lemos é confrangedoramente pobre. Que recomenda Harari? Que se aprofunde a cooperação, em vez de fechar fronteiras. Não há razões sérias para alarme: “Os humanos são agora muito mais poderosos do que o vírus.” “Se confiarmos na ciência e se os países cooperarem efectivamente, não há dúvida de que venceremos isto.” As dificuldades que enfrentamos, o drama que todos vivemos, é a consequência das atitudes de “políticos irresponsáveis [que] têm deliberadamente minado a confiança na ciência e na cooperação internacional. Estamos a pagar o preço por isso”. A rápida propagação da epidemia revela as fragilidades do nosso sistema global, mas o remédio está em reforçá-lo até ao dia em que der à luz o próximo substituto do Sapiens – o Homo Deus enquanto encarnação única de um só sistema científico mundial.

O mínimo que eu “exijo” de Deus é que saiba o que existe para além da morte e quando é que eu própria vou morrer. Mas a suposta divindade do Homo Deus  a Internet-de-Todas-as-Coisas – não permite decifrar este tipo de mistérios. Ainda que um super-algoritmo facultasse a capacidade para enfrentar e curar pandemias – hipótese tão arrojada como improvável –, tais mistérios permaneceriam fora do alcance da infinita sapiência e sabedoria que geralmente atribuímos a um verdadeiro Deus. O deus sonhado por Hariri é uma entidade limitada, afinal muito humana malgrado as suas façanhas ditas sobre-humanas. Deuses destes, seres incompletos e deficientes que não se movem na intemporalidade do Infinito, garantem muito pouco ou até nada. Quando a Natureza se revolta contra o Homem, o melhor é apaziguá-la com sacrifícios rituais ou, na nossa época e na nossa cultura, incumbir a medicina e os políticos de evitarem demasiadas mortes. O Homo Deus só existe na cabeça de Yuval Noah Harari. E é um Homo Deus aflito.

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