Para muitos idosos, a farmácia é hoje um porto seguro

Testemunho de Sílvia Cid, directora técnica de farmácia. “Não conseguimos despachar a fila de utentes antes das 20h. Depois, é preciso ficar até às 22h para tudo o resto: encomendas diárias de medicamentos, avaliar os stocks e reforçá-los e, muitas vezes, tratar as encomendas feitas por telefone ou e-mail, fazer entregas ao domicílio.”

Sou farmacêutica há cerca de 20 anos, mas também sou mãe de uma criança de 12 anos, mulher de um marido com um glioblastoma grau IV (tumor cerebral), e filha de um pai de 68 anos que saiu do Hospital de Santa Maria a 6 de Janeiro deste ano, com uma encefalite herpética, já com a epidemia por covid-19 a escalar a Europa.

A mensagem que pretendo transmitir com esta introdução é a de que somos profissionais de saúde, mas também somos pessoas como todos, com família também. E devemos, entre todos, cidadãos do mundo, dar o nosso maior contributo para combatermos este vírus. Por isso, se vos é pedido para ficarem em casa, fiquem, por favor, entendam esta necessidade, para que os profissionais de saúde consigam ajudar e responder, sem atingirem o limite, sem os serviços terem que fechar por já não ser humanamente possível aguentar.

O que faço com toda esta situação familiar? Deixo-os a todos em casa, para poder continuar a garantir o normal funcionamento da farmácia e assumir, em pleno, aquilo que mais me preenche profissionalmente, ser farmacêutica comunitária, estar na primeira linha de contacto e de prevenção dos problemas de saúde dos utentes, ajudá-los, sobretudo em momentos como este, em que a Humanidade está em perigo por um vírus que não se vê, mas pode matar, e é isto que a população tem que perceber quando se lhes pede para ficar em casa. Não se vê o coronavírus, mas mata!

Todos os profissionais de saúde são chamados a ter uma entrega total, muito além do normal. E se a estão a ter!... E rezo e tento tomar todas as medidas preventivas para não levar o vírus para casa, para junto dos meus que fazem parte dos grupos de risco.

Desde o final de Janeiro começámos a reforçar os stocks na farmácia de medicamentos e dos produtos mais procurados para esta pandemia, máscaras, álcool a 70%, álcool-gel, luvas. Tivemos um barómetro que nos ajudou: a comunidade de comerciantes chineses em Alvalade [Lisboa], que nos foi alertando para o que estava para chegar, comprando caixas e caixas de máscaras, que atualmente já só vendemos à unidade.

A corrida às farmácias começou no final de Fevereiro, sobretudo a seguir ao Carnaval, quando o vírus começou a matar aqui ao lado, em Itália. Permitam-me esclarecer que as máscaras cirúrgicas e autofiltrantes estão a chegar efetivamente mais caras, sobretudo as máscaras FFP2, mais conhecidas como ‘bico-de-pato’. Vêm dos laboratórios e distribuidores bastante mais caras e, portanto, a farmácia é forçada a acompanhar esse aumento. E esta situação também se verifica no álcool-gel. Mas a ética profissional da maioria dos profissionais da nossa classe sobrepõe-se às questões comerciais. Na farmácia que dirijo, os preços praticados são os normais. Há dias, vendi uma caixa de luvas e, mais tarde, veio uma senhora dizer-me: “Ó dra. Sílvia, a caixa de luvas que vendeu a um senhor que estava na fila, ele está agora a vender ao pé do mercado a 1,50€ o par...”

Trabalho cerca de 12 horas por dia, apesar de o horário da farmácia ser das 9h às 19h. Nestas duas semanas que passaram, já em atendimento à porta fechada, não conseguimos despachar a fila de utentes antes das 20h. Depois, é preciso ficar até às 22h para tudo o resto: encomendas diárias de medicamentos, avaliar os stocks e reforçá-los e, muitas vezes, tratar as encomendas feitas por telefone ou e-mail, fazer entregas ao domicílio.

É uma entrega total de toda a equipa aos utentes, a maioria idosos, portanto, uma população de risco para esta pandemia, e muitos deles sem apoio familiar. Para eles, a farmácia é o porto seguro, uma ajuda a muitos níveis! As pessoas estão muito assustadas, sozinhas. É uma loucura de telefonemas, de mensagens nos telemóveis, de e-mails a pedirem medicamentos e outros produtos. Temos dez folhas de encomendas entre máscaras, álcool e álcool-gel, e temos vindo a responder a conta-gotas, para tentar chegar a todos.

Na farmácia elaborámos um conjunto de regras internas e de informação para o utente, de forma a agirmos em conformidade com medidas de proteção para todos. A 12 de Março, colocámos um papel no exterior com a informação de que a partir de dia 14 iríamos começar a atender pelo postigo, de porta fechada (mesmo antes da recomendação da DGS). Toda a equipa passou a atender de luvas, atualmente já de máscara. Borrifamos o postigo com desinfetante entre atendimentos, os terminais de pagamento, as luvas (que trocamos com regularidade), os balcões. Puxadores das portas, gavetas, chão, tudo é desinfetado várias vezes ao dia. Também elaborámos um boletim informativo que está afixado no interior e exterior da farmácia, e que está na nossa página no Facebook. E, em cada atendimento, tentamos informar todos os utentes, de forma a ficarem esclarecidos sobre o que é a infeção por coronavírus e como nos devemos proteger. Queremos que fiquem seguros, calmos e percebam a importância de se capacitarem como agentes ativos para resolver esta pandemia.

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