Usar ou não usar máscara, eis o regresso da velha questão

O debate sobre o uso de máscara de protecção individual voltou a instalar-se com o anúncio de vários países que determinaram o seu uso obrigatório em locais públicos. A OMS insiste que só deve ser usada por pessoas infectadas, cuidadores e profissionais de saúde.

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Miguel Manso

A Organização Mundial da Saúde (OMS) continua a insistir que apenas as pessoas infectadas com o novo coronavírus SARS-CoV-2, os seus cuidadores e os profissionais de saúde devem usar máscaras de protecção individual. Mas a dúvida voltou a instalar-se com as notícias sobre a imposição do uso de máscaras em locais públicos em alguns países. Por todos e para todos. Então, afinal, em que ficamos?

Usar uma máscara não vai funcionar como um escudo mágico contra o SARS-CoV-2 e não invalida, de forma alguma, o distanciamento social, o repetido acto de lavar as mãos e a medida de contenção de “ficar em casa” que esta pandemia exige agora. Este é um dos poucos dados indiscutíveis neste momento.

Muitos especialistas continuam a sublinhar que a adopção desta medida de protecção serve, mais do que para qualquer outra coisa, para dar um sentimento de segurança às pessoas. Pode ser um simples tira-medos, como já se disse no início desta epidemia, quando começou a corrida às farmácias em busca de máscaras, gel desinfectante e (mais tarde) luvas. Esta semana, Mike Ryan, director executivo do programa de emergência da OMS, repetiu o aviso: “Não há provas de que o uso em massa de máscaras pela população tenha algum benefício.”

O debate sobre a eficácia do uso da máscara tem quase tanto tempo como a pandemia. Mas, recentemente, ganhou um novo impulso com a divulgação de dados sobre formas de transmissão do vírus que até agora não estavam em cima da mesa.

Assim, numa fase inicial, espalhou-se a notícia de que o novo coronavírus apenas se transmitia por contacto próximo (gotículas nos espirros ou tosse de uma pessoa infectada) ou através de superfícies contaminadas. Actualmente, alguns especialistas defendem que o vírus poderá ser transportado no ar e ser transmitido através de aerossóis (partículas de uma dimensão bem mais reduzida e leve do que as gotículas da versão inicial). Enquanto isso, a OMS continua garantir que o SARS-CoV-2 não é “airborne”, ou seja, transmitido pelo ar e, ainda esta semana, esclareceu na conta oficial do Twitter que a conclusão invocada em alguns estudos é incorrecta.

No entanto, e ao mesmo tempo que a OMS mantém a sua orientação, diversas autoridades de Saúde de vários países têm optado por aconselhar o uso de máscaras. Em alguns países, como a Áustria, a República Checa e a Eslováquia, mais do que uma recomendação, o uso de máscara em locais públicos é mesmo obrigatório.

Um artigo publicado na revista The Lancet de 20 de Março analisou as políticas em vigor em vários países sobre o uso de máscaras. “O uso de máscaras tornou-se omnipresente na China e em outros países asiáticos, como Coreia do Sul e Japão”, referem os autores do trabalho liderado por Elaine Shuo Feng, epidemiologista na Universidade de Oxford. Mais do que um escudo, a máscara é muitas vezes usada como um símbolo, mostrando preocupação e cuidado com a saúde pública.

Os investigadores reconhecem que, apesar da consistência na recomendação de que indivíduos sintomáticos e profissionais de saúde usem máscaras, foram observadas discrepâncias. “Pessoas em algumas regiões (por exemplo, Tailândia, China e Japão) optaram por alternativas improvisadas ou uso repetido de máscaras cirúrgicas descartáveis. No entanto, o uso inadequado de máscaras faciais, nomeadamente quando não se troca de máscaras descartáveis, pode comprometer o efeito protector e até aumentar o risco de infecção”, refere o estudo.

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Mal não faz?

“É melhor do que nada e mal não faz”, terá pensado muita gente confrontada com a decisão de usar ou não uma máscara quando sai à rua. Mas o problema também está aí. Há especialistas que garantem que pode mesmo fazer mal, alertando que um uso incorrecto da máscara (mexer nela com as mãos o tempo todo, não substituir uma máscara descartável ou simplesmente colocá-la mal, por exemplo) pode acabar por ser mais prejudicial do que não usar máscara nenhuma.

Por outro lado, a elevada procura desta protecção individual levou a uma inevitável ruptura de stocks (e, consequentemente, à prática de preços verdadeiramente absurdos). Há ainda muita gente a improvisar novas formas de criar uma barreira entre as vias respiratórias e o ar que se respira. Mas o mais preocupante é que com tanta gente a comprar máscaras as pessoas que realmente precisam – doentes, cuidadores e profissionais de saúde – podem ficar sem esta importante protecção. Este é, aliás, um dos argumentos mais usados pelas autoridades de Saúde, que continuam a recomendar o uso de máscaras apenas por pessoas infectadas, pelos seus cuidadores e por profissionais de saúde e que, resumidamente, consiste em: deixem as máscaras para quem realmente precisa delas. Em última análise, o uso de máscara também pode ser estendido a grupos de risco, como os mais idosos, grávidas e pessoas com doenças crónicas.

Mas, como já dissemos, nem todos pensam da mesma forma. “É realmente uma boa intervenção de saúde pública que não é usada”, defende K.K. Cheng, um especialista da Universidade de Birmingham, citado numa notícia da revista Science. Mas acrescenta: “Não é para autoprotecção. É para proteger as outras pessoas das gotículas que saem das vias respiratórias.”

É óbvio que as pessoas infectadas (que devem usar máscaras para proteger os outros) não devem acima de tudo sair à rua precisamente para proteger os outros. Contudo, também é verdade que há casos de pessoas que podem estar infectadas e assintomáticas. E a transmissão do SARS-CoV-2 pode acontecer antes de uma pessoa infectada manifestar qualquer sintoma da doença, ainda que o principal veículo de contágio identificado seja a tosse de uma pessoa com covid-19.

Esta é também a base da argumentação de George Gao, director-geral do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças na China, que numa entrevista ao site da Science considera que “o grande erro dos EUA e da Europa é que as pessoas não estão a usar máscaras”. Na entrevista, o cientista chinês acrescenta: “Este vírus é transmitido por gotículas e contacto próximo. As gotas desempenham um papel muito importante – é preciso usar uma máscara, porque, quando falamos, há sempre gotas que saem da boca. Muitas pessoas têm infecções assintomáticas ou pré-sintomáticas. Se usarem máscaras, podem impedir que as gotículas que transportam o vírus escapem e infectem outras pessoas.”

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De facto, parecem existir algumas provas sobre uma eventual persistência do vírus nas finas partículas suspensas no ar, mas o contágio por essa via é improvável, defende Arnold Moto, um epidemiologista na Universidade de Michigan, citado na notícia da Science. “Normalmente, isso acontece em gotículas maiores e sabemos que as tradicionais máscaras cirúrgicas têm um feito muito modesto neste tipo de transmissão”, diz, sublinhando que só a combinação do uso de máscara com outro tipo de estratégias (distanciamento social ou repetida lavagem de mãos) é que realmente fará a diferença.

Um artigo publicado esta quarta-feira na revista The Atlantic resume o difícil dilema: “O debate sobre máscaras é tão intenso, porque os níveis de risco e de incerteza são muito altos.” Citando Bill Hanage, um epidemiologista em Harvard, refere-se que “estamos a tentar construir o avião enquanto o pilotamos”. E o mesmo especialista conclui: “Estamos a ser forçados a tomar decisões com enormes consequências na ausência de dados seguros. É um pesadelo para qualquer profissional de saúde pública medianamente cauteloso.”

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