Se não são psicopatas, são o quê?

Nunca na minha vida vi, no sítio onde vivo há 15 anos, tanta gente a caminhar na rua. Nunca. E não quero ofender ninguém, mas vi muita gente cujo perímetro abdominal não denuncia a prática regular de caminhada ou outra actividade física qualquer.

Este sábado,  a PSP montou um ponto de fiscalização à entrada da Ponte 25 de Abril, sentido norte-sul
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Este sábado, a PSP montou um ponto de fiscalização à entrada da Ponte 25 de Abril, sentido norte-sul Rui Gaudêncio
A acção originou enormes e demoradas filas
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A acção originou enormes e demoradas filas Rui Gaudêncio

Procuro praticar sempre o princípio, “confio plenamente que os outros sabem o é melhor para eles”, um dos preceitos do taoísmo, filosofia de vida que tento seguir há vários anos e cuja prática tenho alicerçado com consulta, mais ou menos numa base diária, do Tao Te Ching, uma colecção de 81 versículos da autoria de Lao-Tzu, profeta chinês que viveu há cerca de 25 séculos. A obra que referi ajuda-me a reflectir e a agir de forma mais tolerante e respeitosa sobre inúmeros aspectos da nossa vida, nomeadamente confiando, tal como disse no início deste texto, que os outros sabem o que é melhor para eles. Ora, essa confiança esvai-se quando há efeitos secundários adversos do direito que os outros têm, e que respeito, de saber o que é melhor para eles e de agirem de acordo com essa premissa.

O momento que vivemos obriga a que não pensemos só em nós. Já morreram em Portugal 100 pessoas (28 de Março) por causa do novo coronavírus. No mundo, morreram já mais de 26 mil pessoas. Nem vou referir o número de infectados, pois todos sabemos que, felizmente, a maior parte vai safar-se sem tomar um comprimido que seja.

26 mil pessoas, 26 mil filhos, pais, avós, sobretudo avós e bisavós — todos sabemos que são as pessoas idosas as mais vulneráveis a esta doença —, 26 mil histórias, um património irrecuperável. Em África, diz-se que “um velho que morre é uma biblioteca que arde”. E é assim, é mesmo assim.

Choro cada um desses velhos, cada uma dessas bibliotecas que não contarão mais história alguma. Choro os meus velhos, uns já idos, outros felizmente bem vivos, como a minha querida avó Lourdes, já com 90 anos, um tesouro precioso que tentamos resguardar a sete chaves da tragédia que vivemos. Choro também os velhos dos outros, mesmo os velhos daqueles que continuam a saber o que é melhor para eles, mas só mesmo para eles, e que ignoram por completo as normas de segurança (já devidamente comprovadas e repetidas até à exaustão), com o isolamento social à cabeça. Trabalha fora de casa quem tem mesmo que trabalhar (e a quem muito agradeço pelo risco), trabalha em casa quem pode trabalhar em casa, fica em casa quem não precisa de sair de casa a não ser que precise mesmo.

Nunca na minha vida vi, no sítio onde vivo há 15 anos, tanta gente a caminhar na rua. Nunca. E não quero ofender ninguém, mas vi muita gente cujo perímetro abdominal não denuncia a prática regular de caminhada ou outra actividade física qualquer. Mas aí, reconheço, estou a julgar sem conhecer a história de cada um, quebrando outro dos preceitos do taoísmo.

Confesso que me tem sido difícil fazê-lo quando vejo repetidamente gente na rua, cruzando-se com mais gente, convivendo, deslocando-se para a praia —como ontem se ouviu da boca de um veraneante num directo de um canal de televisão durante o congestionamento de trânsito na Ponte 25 de Abril —, entrando e saindo de casa(s) frequentemente (conheço casos de jovens adolescentes que não abdicam de, diariamente, visitar as namoradas/namorados, de conviver com os amigos nas casas de uns e de outros; e isto só para falar do que conheço, o relatado certamente que se replica noutras faixas etárias da população), arriscando espalhar ainda mais este maldito vírus e matar mais gente.

Não há que ter tento nas palavras neste caso. Trata-se de pôr a própria vida e a dos outros em risco! Não quero acreditar que essas pessoas desejem que mais pessoas fiquem infectadas e que mais pessoas morram, provavelmente só acham que nunca serão infectados e também não querem saber que os outros sejam, mesmo que sejam culpados por isso. Isso tem um nome: psicopatia.

“A combinação de baixa aversão ao risco e ausência de sentimento de culpa ou remorsos, os dois pilares da psicopatia, podem conduzir, dependendo das circunstâncias, a uma carreira de sucesso, seja no crime, seja na vida empresarial. Por vezes em ambos”, explica Joe Newman, professor de Psicologia na Universidade de Wisconsin (EUA), citado por Kevin Dutton no livro O que podemos aprender com os psicopatas.

A “teoria ‘convencional’ defende que os psicopatas são incapazes de experimentar medo, empatia e uma série de outras emoções, o que lhes anestesia a consciência social”, esclarece Dutton, ideia que Newman refuta, explicando que não acredita que os psicopatas não sejam incapazes de sentir medo, mas antes que eles (os psicopatas) simplesmente não reparam. “Não sentem sofrimento, nem se apercebem dessa emoção nos outros, uma vez que, quando se concentram numa tarefa que lhes promete gratificação imediata, descartam tudo o resto, que consideram irrelevante. Emocionalmente falando, têm ‘visão em túnel’.”

Quando falamos em psicopatas não falamos só de assassinos a quem foi diagnosticada essa perturbação mental; qualquer um de nós pode ter nascido com essa característica, ou pelo menos agir como tal. Voltemos um pouco atrás, pegando no exemplo português, concretamente os exemplos da praia de Carcavelos à pinha logo no início do surto, os passeios no paredão em vários pontos do país, as filas de trânsito na Ponte 25 de Abril e a rua em frente à minha varanda que parece uma pista de atletismo: estamos em estado de emergência, há milhares de infectados com um vírus que aterroriza o mundo, há gente a morrer todos os dias no nosso quintal, e aquelas pessoas vão para a praia quando lhes pedem que fiquem em casa para que todos fiquemos bem? Se não são psicopatas, são o quê?!


Jornalista, palestrante e autor dos livros O Sofrimento Pode Esperar (2016, Ed. Albatroz) e Quantas vidas temos? (2019, Coolbooks)

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