Um vazio em maiúsculas

Uma visão desapiedada do lugar do ser humano.

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Rui Nunes pensa um mundo que se situa aquém da palavra Rui Gaudêncio

O início de O Anjo Camponês poderá lembrar-nos as sequências finais de um livro anterior de Rui Nunes, A Crisálida (2016). Em particular, esse ponto em que se formavam “sombras/ erectas, erradas, que Ulisses não visitará” e onde se erguia um “Estádio Romano” cujas “estátuas dos atletas mais não são do que sobras”. Essa mesma imagem de cessação, de fim, é retomada nas palavras que abrem o novo livro do autor. E no entanto, já não é o ardiloso Ulisses a comparecer, incapaz, no livro anterior, de qualquer regresso, ou reconhecimento, mas o herói que transporta consigo a ira e o peso da dor (no próprio nome, em cuja raiz se encontra o sentido de “pesar”) — “A vingança de Aquiles restituirá a Pátroclo o texto com que nasceu.” (p.9) Em ambos os casos, o recurso a mitos fundadoras da cultura ocidental apenas reforça a extensão de um mal disseminado e de raízes incalculavelmente fundas — que a escrita de Rui Nunes tem rastreado, num combate de entrega máxima. Porque podemos interpretar a presença de Ulisses e, agora, de Aquiles como formas de significar que tudo ruiu até à base, até aos alicerces mais remotos da ideia de civilização e para qualquer possibilidade do literário. Não por acaso, Pátroclo, o amigo cuja morte Aquiles vinga, na Ilíada, se converte em circunstância textual. Mas não estamos diante de um caso de erudição; encontramo-nos, pelo contrário, num ponto em que não existem já garantias seguras, nem mesmo no que há de mais perene, como a memória colectiva. A arte de Rui Nunes não consiste especialmente na alusão culta, mas na extrapolação desses dados adquiridos, para atingir outros alcances. Reconhecer o augúrio do fim, e fazê-lo através da descrição do estado ruinoso do que existe de mais identitário e sólido, torna o texto especialmente lancinante, de uma emergência mais impressiva.

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