Ilhas

Entre paredes tudo se pode fazer menos o que se pode fazer fora delas. Somos uma cultura do exterior. Nos mundos em que as casas são apenas lugares de passagem nocturna, compartimento único, a casa é o exterior, tudo acontece fora.

Em A Colónia penal, de Kafka, a máquina de tortura é ícone e além de ícone — um topo da tecnologia do momento em contexto tropical / o Tarrafal era isso de modo menos exuberante — a expressão das virtudes operacionais do sistema. Quem desobedece é triturado, passa do modo lento de morrer ao modo imediato. Funciona.

A regra dos sistemas é essa: funcionar. As rotinas, os modos regulares desse funcionamento. Os agentes dessas máquinas sistémicas, da logística ao cadafalso, da cela ao tiro na nuca, etc., são activadores regulares dessa justiça que só conhece a repressão e a morte como decisão. É a história dos campos, da relação entre os capatazes, os guardas e os desgraçados, uns ainda vivos outros nem isso, zombies, muçulmanos… como vem em Agamben.

No Jogo do fim Beckett encerra duas criaturas que desenvolveram vínculos relacionais monstruosos, “naturalizados” pelo tempo de vida conjunto, como senhor e escravo, numa narrativa que pouco trás de trás, não faz enredo, e num espaço em que - um bunker - além dos dois estão os pais de Hamm, Nell e Nagg, em caixotes de lixo, apêndices humanos que de tempo a tempo respiram fora da tampa e alimentam-se a biscoito, biscoito e meio. Nada restará da humanidade a não ser estas criaturas que se torturam entre elas num ritual de violência constante exercido por Hamm, o patriarca cego, sobre Clov, o servo, enquanto os outros cristalizaram na mesma conversa única, na mesma memória localizável.

Nas Ilhas de Marivaux — a da Razão, a dos Escravos, Colónia, etc,. —  observamos laboratórios sociais, estudos de relações de classe, entre  preconceito e o exercício da arbitrariedade — Marivaux inverte os papéis e põe-nos a rir, o palhaço rico a fazer de pobre e o contrário; a inadequação mostra mais que a desigualdade, demonstra que a natureza dos vínculos gera culturas específicas, subserviência — manha — e arrogância instituídas. O optimismo da razão, ao tempo verdadeiro motor ideal, faz supor que podemos aprender qualquer coisa com o que é errado na raiz, estruturadamente desigual e opressivo.

São narrativas sobre o fechamento que nos permitem olhar o todo escrutinando a parte. Fechados em casa significa ter fora as autoridades que fazem funcionar o regime da clausura geral obrigatória.

Os frades cartuxos há muito que o fazem voluntariamente, não é total, andam pela horta, rezam em conjunto. Nós podemos sorrir às árvores, no quintal ou da janela, quem não as tem… olha o prédio diante, vê outros na mesma sorte, aplaude a horas combinadas aplausos diferentes, a unanimidade é um absurdo.

Entre paredes tudo se pode fazer menos o que se pode fazer fora delas. Somos uma cultura do exterior, os italianos mais que todos, ma che… Nos mundos em que as casas são apenas lugares de passagem nocturna, compartimento único, a casa é o exterior, tudo acontece fora. Entre nós é meias tintas, casinha sim, mas muito piqueniqueiros, praiómanos. Se falta a melancia, o sol a pino, falta sentido. Sim, somos animais de sentido e sentidos. Do sentido, filhos do sentido mesmo quando a falta de sentido tomou conta e a irracionalidade religa cegando e colhendo o dízimo.

Quando não há interior que abra a partir de dentro busca-se nas mitologias diárias, nas ideologias, na crença vária, da cruz ao partido. A laicidade é uma utopia. A mais interessante, aliás.

Que fazer? Virar para dentro, adentrar, mas adentrar com sumo, vitamina ideal, arejadamente. Faz falta, numa sociedade dominada pelo espectáculo, pela proliferação de formas de relação subalternas, dos fãs diversamente idólatras aos seguidismos múltiplos. As TVÊS e seus shows regressaram — momentaneamente? — ao estatuto imperial, e, pela via do monotema, vamos sofrendo a estatística da curva pandémica como drama contínuo.

As redes contrapõem outros mundos? Sim, há extraordinária clarividência nas redes — ao contrário do que diz Pacheco Pereira, que tem alguma razão no que diz, mas não a tem toda, as resistências sempre foram partes —, além do lixo dominante. Mas a lucidez sempre foi excepção e a razão de aplicação parcial.

Sem uma componente dramática, masoquista, nada anda, a vida parece necessitar de uma grande ferida em continuum para se sentir viva, há uma propensão do pior que nos vem da coisa judaico-cristã, suplicia-te, este não é o momento de humores — dos verdadeiros, não dos piadéticos.

Perigo que se corre é que ao sair disto já estejamos num outro sítio, numa outra sociedade, num outro tempo e espaços mentais em que o medo tenha instalado dispositivos sócio-operacionais mais eficazes que as máquinas de tortura do tempo da primeira guerra mundial  — para já, já se fala de uma economia de rastos e de coisas semelhantes à troika.

Não será altura de uma volta funda nisto tudo? De criar um SNS que, na realidade, seja global, social, mental, relacional; interesse geral sobre o privado, um Estado de todos, uma sociedade da democracia esclarecida, a da hegemonia cultural?

Nesta altura, sem volta maior que estas medidas para voltar ao mesmo, que melhorou um poucochinho quase nada com o cativante Centeno — mantendo-se a mesma engrenagem capaz de parir o mesmo antes — a parábola de Beckett diz-nos qualquer coisa e o Jogo do fim (que pode ser um jogo lentamente do fim sem fim à vista) pode ter começado.

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