Coronavírus: as consequências

Eis a primeira consequência do coronavírus: a rutura com a política neoliberal dos governos conservadores.

O governo britânico abandonou a política darwiniana de infeção generalizada em favor da política restritiva dos governos europeus. A equipa de Neil Ferguson do Imperial College, especializada em modelização de epidemias, mostrou que 250.000 britânicos e 1,2 milhões de norte-americanos, no mínimo, iriam morrer sem intervenção. Nenhum governo resistiria a esta hecatombe. O governo britânico decidiu ainda dedicar 350 mil milhões de libras para ajuda a empresas, garantindo 80% dos salários de trabalhadores licenciados até ao valor de 2500 libras mensais por três meses. Mais de três milhões de pessoas podem ficar sem trabalho. Existem moratórias para pagamentos fiscais, juros de empréstimos e rendas de casa.

Esta é a primeira consequência do coronavírus: a rutura com a política neoliberal dos governos conservadores. Transformação semelhante ocorreu em França: o coronavírus transformou Macron de social-liberal (menos radical que os conservadores britânicos) em adepto do Estado-providência. Não me parece que estas políticas tenham vindo para ficar, mas devemos registar que a função do Estado, para a elite governamental de direita e centro, foi alargada da tradicional proteção dos negócios para a proteção das pessoas. O problema é como sair da crise económica, pior que em 2007-2009.

No setor dos serviços, a imposição de distância social para conter a difusão do vírus levou ao fecho de empresas e instituições. Esta é a segunda consequência, a expansão do trabalho em casa via internet. Só as grandes empresas poderão resistir no futuro à descoberta das vantagens deste sistema: redução drástica do tempo gasto em transportes e provável aumento da produtividade. É preciso oferecer vantagens para manter um ambiente gregário e criativo, como acontece com os escritórios da Google em King's Cross, equipados com ginásio e restaurante biológico.

Nas universidades, a greve foi cancelada no meio da terceira semana e passámos a ensinar online a partir de casa. A experiência tem sido gratificante: o Microsoft Teams funciona com melhor imagem que o Skype, é fácil de usar, podem colocar-se textos no écran, introduzir PowerPoint comentado ou criar pequenos grupos de discussão. Praticamente não há diferença em relação à aula em presença, embora neste caso a participação de cada um seja mais estimulada. O acompanhamento de estudantes pelos tutores pode ser feito igualmente via internet, já há anos tenho reuniões com os meus doutorandos via Skype.

Vejo também o impacto desta nova maneira de trabalhar na imprensa, onde os jornais estão a ser impressos a partir de trabalho feito exclusivamente em casa. Não dispenso a leitura do Financial Times ao sábado, é um jornal plural com excelentes suplementos culturais que me dá uma visão internacional e uma profundidade de análise rara noutros jornais britânicos (só o Guardian se aproxima, mas o horizonte é nacional). Este sábado teve uma das melhores edições de sempre, li-o praticamente da primeira à última página. Será que o trabalho a partir de casa permite melhor concentração e criatividade? Esta ideia contradiz toda a lógica do trabalho coletivo como local de troca de ideias e de controlo de horas de trabalho. Aliás, este último aspeto pode ser feito de forma remota ou simplesmente por objetivos.

A troca de ideias está hoje bastante limitada face-a-face: as pessoas comem uma sanduíche no escritório, são raros os almoços onde a conversa e as ideias fluem. Existem outros contextos, via internet, onde essa troca ocorre. A nível universitário, ainda existe alguma troca de ideias nos restaurantes e bares próprios, enquanto os seminários desempenham um papel importante de discussão e difusão de novas ideias. A internet pode oferecer condições semelhantes, embora a espontaneidade de discussão possa ser prejudicada. Insubstituível, a meu ver, é a participação coletiva em bibliotecas, arquivos ou laboratórios, base de todo o trabalho universitário de pesquisa.

A terceira consequência tem a ver com o aumento em flecha das vendas de produtos online, com o agravamento da crise das grandes superfícies. Este fenómeno, conjugado com o anterior, irá ter um efeito de bola de neve: a propriedade comercial urbana irá reduzir-se, contribuindo para a quebra de preços e, esperemos, para a renovação do centro das cidades enquanto espaços residenciais. A reorganização desses espaços em função do lazer irá proporcionar outro tipo de investimentos (parques, jardins, zonas de recreação para crianças, jovens e adultos), acompanhado pelo relançamento de padarias, cafés, restaurantes, galerias de arte, cinemas e teatros.

A quarta consequência é sinistra: o coronavírus acelerou o processo orwelliano de controlo da população pelo Estado. Na China existem apps que permitem identificar a localização dos doentes. Um correspondente em Xangai apercebeu-se que o doente mais próximo com coronavírus estava a 500 metros da sua casa. Os drones chineses com visibilidade noturna e altifalantes para vigiar a circulação de pessoas 24 horas ao dia estão a ser reproduzidos nos Estados Unidos e comprados pela polícia para impor a proibição de saída de casa. A tecnologia de reconhecimento facial, igualmente criada na China, está a difundir-se nos países ocidentais. Se as novas tecnologias invasivas de um Estado totalitário se difundem, isso significa que uma das bases da democracia, a proteção de dados pessoais, deixa de existir.

A minha experiência nas última semanas tem sido mista: vivo em Cambridge e trabalho em Londres, o que significa que deixei de passar horas em comboios com permanentes atrasos. A produtividade aumentou claramente: completei quase todos os artigos e livros editados em atraso; retomei a escrita do meu novo livro sobre os Cristãos Novos de origem judaica. As conferências que eu tinha aceite fazer em Espanha, Portugal e Itália foram todas canceladas: na maior parte dos casos relacionavam-se com a pesquisa, mas noutros aceitei por prestígio das instituições, faz parte dos indicadores de impacto. A verdade é que tenho mais tempo para escrever. Por outro lado, bibliotecas e arquivos estão a reduzir os tempos de abertura e hesito em utiliz­á-los nestas circunstâncias de transmissão do vírus.

Do ponto de vista pessoal tenho sofrido as consequências da paralisia do sistema de saúde britânico: não consigo fazer uma consulta com possível scanning que pode ser importante. No hospital público a lista de espera é impossível. Como tenho seguro, acabei por obter uma consulta por telefone num hospital privado dentro de uma semana, só havia um especialista disponível numa das duas principais clínicas. A vida em casa sempre foi simpática, conversamos imenso, agora, depois do jantar, vemos mais filmes e documentários em conjunto via internet, nunca tivemos televisão. O problema é manter os nossos filhos em casa, o João, com 17, e a Sophie, com 16 anos. Novos tempos virão, esperemos com melhor configuração social e espacial.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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