Que as convicções democráticas de António Costa resistam

O Presidente depositou nas mãos do primeiro-ministro um poder nunca detido por qualquer outro chefe de Governo na democracia pós-25 de Abril.

É uma evidência, já salientada por muitos, que o decretar do estado de emergência não era, por agora, necessário para o Governo e a sociedade fazerem, em conjunto, frente à pandemia de coronavírus. Isso foi política e partidariamente salientado pelo primeiro-ministro, António Costa, pela líder parlamentar do PS, Ana Catarina Mendes, mas também pelo BE e pelo PCP. E também argumentado por alguns intelectuais como José Gil, Rui Pena Pires e Manuel Loff em artigos de opinião no PÚBLICO, e Samuel Paul Veissiere em entrevista à TSF.

Quer a forma ordeira e cumpridora como a generalidade da população estava já a reagir e tem reagido às instruções dadas pelo Governo e pela Direcção-Geral de Saúde, quer a prontidão com que o Governo actuou na declaração de estado de calamidade em Ovar são demonstrativas de que há etapas e instrumentos legais intermédios, sem ser necessário acrescentar, aos instrumentos de acção do Governo, uma fórmula constitucional de excepção, que suspende direitos e liberdades do Estado democrático.

Depois de passar directamente de uma presença activa nas ruas para um estado de auto-isolamento em casa, Marcelo Rebelo de Sousa esteve oito dias em silêncio, quebrado dois dias antes de voltar ao Palácio de Belém, através de uma bizarra mensagem por Skype, em que lançava a bomba atómica da convocação do Conselho de Estado para accionar o processo que o levaria a decretar estado de emergência.

Ao dirigir-se ao país, na quarta-feira, para anunciar que assinara o decreto-lei do estado de emergência, o Presidente da República utilizou uma argumentação pouco política e institucional, para, num tom paternalista, subir as restrições para patamares que limitam os direitos democráticos: prevenir o alastramento da pandemia.

Não tenho dúvidas sobre a preocupação de Marcelo Rebelo de Sousa perante a situação que o país vive e compreendo que se tenha sentido compelido, pela sua consciência, a dar o passo em frente e a queimar etapas e instrumentos legais intermédios. Mas, ao tomar esta decisão, o Presidente agiu de forma pouco sensata em dois planos.

Por um lado, fez alastrar o clima de medo e de pânico entre a população, que estava calmamente a acatar as determinações do Governo. Mesmo em Ovar, a nova realidade do estado de calamidade foi vivida com a necessária tranquilidade. Acelerou-se, assim, um clima de ansiedade social que, com medidas graduais, iria surgir ao longo dos próximos meses.

Por outro lado, ao assumir-se como protagonista do poder estatal e ao avançar com este estado de excepção, o Presidente depositou nas mãos do primeiro-ministro um poder nunca detido por qualquer outro chefe de Governo na democracia pós-25 de Abril.

Do ponto de vista simbólico e prático, é esta fronteira quebrada que para mim é grave. Era já uma realidade adquirida que, no quadro de contágio galopante da pandemia em Portugal, por exemplo, este ano não haveria manifestação do 25 de Abril ou do 1.º de Maio – até alguns responsáveis sindicais o tinham admitido.

A consciência do risco de vida que as pessoas correm, neste momento, existe na generalidade da população. Basta observar as ruas, as lojas, o trânsito. O sentimento de insegurança que já dominava as sociedades contemporâneas ampliou-se para níveis estratosféricos com este novo medo de um vírus para o qual não temos defesas nem imunidade.

Como é salientado no importante trabalho jornalístico da autoria de Luciano Alvarez e editado quinta-feira pelo PÚBLICO, vivemos uma situação não só inédita para a nossa época, como uma prova-limite que testa a capacidade de resistência dos regimes democráticos. Era já frágil a fronteira que impede o resvalar dos Estados demoliberais para aquilo a que se chama hoje as “democracias musculadas” – os regimes que entram em escalada autoritária em torno de um líder populista. Dar poderes excepcionais de decisão, de acção e de intervenção a um primeiro-ministro, anulando o equilíbrio necessário entre poderes e contrapoderes político-institucionais, é abrir uma porta perigosa para o futuro.

É verdade que o primeiro-ministro português se chama António Costa, político que, até hoje e até prova em contrário, é uma pessoa de fortes convicções democráticas. É, aliás, demonstração dessa consciência democrática a resistência que demonstrou à adopção do estado de emergência, pelo que significa de suspensão de direitos e liberdades. Daí que tenha feito um quadro de novas medidas sensato, continuando a apelar ao bom senso da população. 

Para futuro, porém, por iniciativa do Presidente da República, fica aberta uma estrada perigosa. Afinal, as chamadas “democracias musculadas” de hoje, instalaram-se no poder através de eleições. Há riscos que é leviano correr. Para mais quando há alternativas. É como, em tempo de pandemia, ir para a praia em grupo, quando é aconselhado ficar em casa.

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