Escrevo-vos de um país em quarentena, França

O novo coronavírus veio desafiar a nossa consciência e maneira de viver derruba tudo no seu caminho e desintegra as nossas sociedades. O medo da morte causado por ele expôs-nos a nós mesmos e a outros que não podíamos ver em tempos de imprudência, leveza e insensatez.

Aqui há uma atmosfera sinistra. Há estupor, um sentimento de profunda preocupação e ansiedade apocalíptica. O tom marcial escolhido pelo Presidente da República Francesa durante o seu segundo discurso televisivo na segunda-feira, 16 de Março, após o do dia 12, finalmente fez com que os Franceses, esse povo rebelde e sempre propenso a desafiar a ordem pública, percebessem a gravidade dessa pandemia mundial chamada coronavírus. “Estamos em guerra”, repetiu Emmanuel Macron seis vezes no discurso, que durou pouco mais de 20 minutos e que foi inspirado pelas grandes mentes da nação, como Clemenceau e De Gaulle. O presidente colocou o país em confinamento.

A França, que nunca teve que tomar essa decisão, mesmo que temporária, em tempos de paz, e o mundo viram um presidente que parecia estar à altura do desafio e consciente da gravidade da situação. “Fiquem em casa!”, intimou ele, como chefe de guerra tranquilizador, depois de anunciar medidas dignas de um Estado-Providência rico. E alguns minutos depois, o Ministro do Interior, Christophe Castaner, que veio anunciar a implementação da quarentena, decidiu pronunciar claramente a palavra “confinamento" que o presidente habilmente evitou. Portanto, a França está em quarentena forçada, desde terça-feira, 17 de Março, às 12 horas, e cem mil agentes da polícia foram mobilizados para garantir o cumprimento da decisão e realizar verificações em pontos fixos e móveis.

O país entrou em guerra contra a covid-19 (nome abreviado do inglês Coronavirus Disease 2019). Assim, todos nós que vivemos aqui, incluindo os territórios ultramarinos, para sairmos de casa, devemos estar munidos de um documento que justifique o motivo da saída. As violações são punidas com uma multa que já aumentou na quarta-feira, devido a milhares de violações já encontradas, de 38 para 135 euros. São ainda autorizadas as saídas para ir trabalhar, quando o teletrabalho é impossível, ou para ir comprar bens de primeira necessidade, buscar e deixar filhos, para casais separados, apoiar pessoas vulneráveis e fazer exercícios físicos sozinho perto de casa. E o governo adaptará essas medidas se não forem suficientes. Enquanto isso, os profissionais de saúde continuam a dizer que o país está numa verdadeira corrida contra a doença e a morte.

Há psicose. Até há suspeitas sobre o fim dos tempos, como afirmam na média alguns comerciantes do Apocalipse, que se apresentam como se tivessem falado com Deus no minuto anterior aos seus sermões. Mas eles podem ter entendido uma coisa: o medo da morte aproxima os humanos da humanidade. Isso torna-os mais conscientes da vida que tomam como garantida e da sua fragilidade. Obriga-os a criar repentinamente a cadeia de solidariedade tão ausente nas suas vidas quotidianas, que eles geralmente deixam de bom grado vagar pela vida egoísta do mundo que criaram, pela sede de acumular riqueza e pelo desejo individual para se felicitar pelo seu poder. Todas as lutas e os gritos para criar uma humanidade maior e um mundo mais justo não foram suficientes, foi preciso um vírus para abalar o mundo e as certezas daqueles que o governam.

Esse vírus que veio desafiar a nossa consciência e maneira de viver derruba tudo no seu caminho e desintegra as nossas sociedades. Esvaziou as cidades, trouxe tumulto nas lojas que vendem comida, interrompeu as escolas e abalou as bolsas de valores. E os sistemas de saúde estão à beira do colapso. O medo da morte causado pelo coronavírus expôs-nos a nós mesmos e a outros que não podíamos ver em tempos de imprudência, leveza e insensatez. Fez-nos encontrar tempo (até que enfim!) para nos olharmos nos olhos, para nos cumprimentarmos na rua com magnanimidade e até para falarmos com desconhecidos, para nos tranquilizar. Um véu foi levantado, entendemos que estamos todos no mesmo barco e os nossos privilégios e preconceitos estão agora a vacilar, já que enfrentamos um único medo comum, o do fim.

O coronavírus, portanto, faz-nos entender cada dia a importância dos outros nas nossas vidas: “Eu existo porque tu existes”, é o que ensina uma sábia filosofia africana chamada Ubuntu. Deveras, o outro justifica a minha existência, mesmo se agora devemos saudar-nos com os cotovelos ou os pés e manter entre nós uma distância de segurança de pelo menos um metro. Hoje sentimos a angústia que provoca a distância que criamos entre nós e ela diz-nos que algo está errado no nosso sistema de valores. Diz-nos que fraccionamos a humanidade em unidades mais ou menos importantes, que vivemos isolados cada um no seu buraco para esconder a nossa opulência. Fomos condicionados pelo nosso mundo e estamos agora a ser desafiados para vermos com os nossos olhos o fruto da nossa criação: a nossa impotência.

Embora a ideia da morte colectiva pareça estranhamente mais suportável do que a morte individual, algo está realmente a acontecer na nossa existência neste momento. Ser lembrado de que a finalidade da vida é a morte torna-nos mais humildes e mais humanos. Todos nós vamos morrer, desta vez ou de outra, sabemos disso agora mais do que nunca. Portanto, somos todos iguais, pelo menos perante a morte, porque criamos um mundo que é ainda mais vulnerável e frágil por ser global. Mas e se saber disso for, acima de tudo, uma bússola para nos levar a um mundo melhor que devemos criar a partir de agora? E se essa for a última chance que temos para criar outro mundo?

Negação não é terapia. Se não morrermos desta vez, morreremos outra vez, por isso há uma urgência em mudar o nosso mundo. Essa crise sanitária é uma boa demonstração do grau de interdependência atingido nas nossas sociedades. “O nosso país está a atravessar uma crise sanitária sem precedentes há um século”, disse o Primeiro-ministro francês, Edouard Philippe, na quarta-feira, 18 de Março. De quem é a culpa? Quem criou este mundo hiper-globalizado, a um nível tão alto de interdependência de infra-estrutura e sistemas de produção que não colocam o ser humano no centro?

A África Subsaariana, que de momento é a parte do mundo menos afectada pelo vírus e onde alguns iluminados evocam uma vantagem genética hipotética, também deve ter consciência dessa crise. Seja o que for, não deve isso ser para a África uma razão de júbilo temporário, ela não é obrigada a seguir a indiferença do Ocidente em relação a seus múltiplos infortúnios, mesmo que o coronavírus subitamente tenha lembrado que o deslocamento de população não é apenas o problema de “outros”. As fronteiras também se fecharam contra a Europa. Portanto, a África deve elevar-se ao nível mais alto da humanidade; when they go low, we go high (quando eles atingem o fundo da baixeza, nós subimos o nível), Michelle Obama já lembrou esse princípio de grandeza.

A humanidade de amanhã está em jogo hoje e devemos todos estar à altura do desafio. Se os países desenvolvidos fossem mais responsáveis, deveriam admitir que a sua responsabilidade é mais importante do que a dos países menos desenvolvidos e, consequentemente, contribuir mais para reparar o mundo, tanto em termos de direitos humanos quanto na distribuição de riqueza e ecologia. Deveriam doravante entender que o universalismo que advogam só pode ser viável se levarem em consideração o contexto histórico, cultural, social e económico de cada país.

O futuro agora é incerto, é o momento propício para a introspecção, que deve permitir a cada um questionar a nossa relação com a vida e com os outros, pois, e ouso acreditar, finalmente entendemos que tudo é fútil e que a única coisa que realmente importa é a vida juntos. Não estamos a assistir ao fim do mundo como os apóstolos dos deuses vingativos gostariam. Estamos certamente a assistir ao fim de um mundo e temos a oportunidade rara de inventar uma nova maneira de viver. A questão agora é: para onde queremos ir após o colapso de um modelo que encontrou os seus limites?

Sugerir correcção
Ler 1 comentários