A natureza nos reclama

Esta epidemia vai passar, e deixar profundas cicatrizes no tecido económico português, para além dos dramas humanos que está causando.

A relação do homem com a natureza vem sofrendo uma transformação profunda desde o tempo em que João Rodrigues de Sá de Meneses compôs “De Platano” (1527 – 1537) um tratado sobre essa árvore, incensada pela cultura clássica e identificada por ele entre nós, plátano que estendia a sua bela sombra na vizinhança da matriz de Azurara (“Paisagem e erudição no humanismo português”, A.S. Tarrío, Fund. C. Gulbenkian, Lisboa, 2009). Os portugueses foram também dos primeiros veículos do conhecimento da natureza em partes remotas do nosso planeta, e da sua “viagem” para outras paragens, e para o nosso prato.

Essa interação do homem com o meio ambiente se dava no entanto ainda em reduzida escala, mantendo a harmonia cantada pelos poetas, sublinhada pelas mitologias e religiões, e integrada na vida e cultura dos agricultores e pastores de todo o planeta. Hoje porém a realidade é outra. Com o desenvolvimento da civilização urbana e a proliferação descontrolada da técnica, essa relação foi cortada, e o homem passou a acreditar que entre ele e a natureza, de quem é dono e senhor, haveria um fosso radical.

Os recentes surtos de epidemias como a SARS, a Ébola e agora a covid-19 nos recordam oportunamente que não é assim: a natureza não é apenas objeto da fruição mais ou menos vácua de hordas de turistas. O homem, quer tenha consciência disso ou não, continua ligado a ela para o bem e para o mal. O fato de sempre ter havido epidemias, como a que assolou a Europa no século XIV, e dizimou boa parte da população, não pode iludir as mudanças radicais que o homem está introduzindo no meio ambiente. As recentes epidemias são mais uma consequência dessa devastação, junto com a dramática alteração climática de que estamos apenas começando a tomar consciência, desde há “apenas” 50 anos… (Celso Furtado, “O Mito do Desenvolvimento”, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1974).

Num artigo recente do jornal The Guardian, John Vidal (Band Foundation e Wyss Foundation) avança argumentos muito claros ligando essas recentes epidemias ao tipo de desenvolvimento das sociedades contemporâneas, baseado na destruição da natureza, que é o habitat natural de espécies animais de que esses vírus são endémicos. Dessas espécies para os animais domésticos que os consomem, e daí para o homem o caminho é fácil. As populações com esses hábitos alimentares, que antes viviam isoladas, hoje emigram para as grandes metrópoles apinhadas de gente, onde essas epidemias adquirem um volume inédito, e consequências que se podem revelar infinitamente mais devastadoras do que as da atual  covid-19. Lembremos que a mortalidade induzida pelo Ébola é de 90%. Por todo o lado se cavam minas à procura das “terras raras” para alimentar a indústria de telefones e outras bugigangas, se constroem barragens para alimentar o consumo superlativo e perdulário das metrópoles, no desprezo total das populações ribeirinhas, como é o caso com o colonialismo extrativista na Amazônia.

A dimensão ecológica deve portanto se tornar uma preocupação constante das nossas democracias, mesmo em meio urbano. A condescendência com a proliferação de percevejos e ratos numa cidade como Paris é sintomática e inaceitável. A intenção do governo português de construir um novo aeroporto dentro da região urbana de Lisboa é um erro, como é um erro que o Porto de Lisboa, com a anuência da Câmara, tenha construído no centro da capital um terminal de cruzeiros sem preceder ao devido licenciamento ambiental, requerido por lei.

No caso desses navios não se trata apenas de danos mais ou menos invisíveis ao meio ambiente. É sintomático que vários dentre eles estejam de quarentena no Japão e nos EUA devido à covid-19. Esses navios são férteis vectores de doenças devido à promiscuidade neles reinante. Os milhares de turistas que durante alguns dias despejam nos centros das cidades portuárias são, involuntariamente, agentes da desordem global do meio ambiente. O turismo de massa não pode constituir a base de uma política urbana sã.

Esta epidemia vai passar, e deixar profundas cicatrizes no tecido económico português, para além dos dramas humanos que está causando. Outras virão, talvez ainda mais graves, se os responsáveis pelos governos e atividades económicas não optarem por um tipo de desenvolvimento em que se volte a visar a harmonia com a natureza, e onde a técnica seja empregue na melhoria da vida, e não na sua extinção.

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