Regionalização: um processo refém da líbido de poder central e municipal

Será que este caminho feito em círculos, exigindo custos e energia a todos, é apenas resultado da incapacidade do Estado central em abrir mão do poder que desde sempre dispôs? Talvez seja pertinente trazer também para a discussão a realidade pulverizada, mas muito presente, do poder local.

Existe a convicção, há muito estabilizada, da existência de uma estrutura de poder centralista em Portugal, mas sobretudo dos efeitos das suas externalidades negativas sobre o processo de desenvolvimento de comunidades, atividades e territórios. Essa realidade é confirmada a partir das políticas e instrumentos técnicos e legais que são ainda hoje pensadas e aplicadas de modo pouco ajustado às particularidades regionais, implicando que os problemas sentidos a estas escalas encontrem dificuldades em ser convenientemente respondidos. Existem exceções interessantes a este rolo compressor (relembre-se o caso do regime de exceção para as touradas com touros de morte em Barrancos), mas que, na verdade, acabam por vir reforçar a ideia de que as instâncias do poder central têm dificuldade em considerar as vontades e particularidades das escalas territoriais inferiores.

As críticas que desde há muito têm sido feitas a este modelo com séculos acabaram por dar resultados limitados, se bem que possam ser entendidos como pequenos passos que poderão vir a desembocar, no futuro, num efetivo modelo alternativo de gestão do território e do seu desenvolvimento. Desde 1835 que existem os distritos administrativos, onde nas respetivas cidades-sede se foram progressivamente concentrando órgãos desconcentrados do Estado Central; em 1936 foi traçada a divisão administrativa do continente em províncias com base nos estudos de Amorim Girão, onde se valorizava não só as respetivas características regionais mas também o que as distinguia das demais; as regiões-plano, definidas em 1979 na sequência da criação das “regiões de planeamento” de 1969 e que continuam a vigorar quase na íntegra com sedes no Porto, Coimbra, Lisboa, Évora e Faro, são exemplos de como desde há muito se sentiu a necessidade de olhar para o território não como um todo, mas como um conjunto racional de partes que se deveriam articular na horizontal (entre si) e na vertical (multinível).

Este percurso teve tradução vincada na primeira Constituição da democracia portuguesa. A regionalização, se bem que tendo de ser sujeita a um prévio referendo, está ali em lugar de destaque a par dos outros dois extremos – o nacional e o municipal –, sendo que até hoje acabou por não se concretizar. A entrada na UE e a correspondente utilização dos quadros comunitários apoiou largamente o investimento desencadeado pela administração central, mas também o de raiz municipal, distribuído quer pelas CCDR, quer pelas Comunidades Intermunicipais. Todavia, tudo foi acontecendo num delicado equilíbrio e compromisso entre centralismo e localismo. Mesmo o atual pacote da descentralização parece atravessar por cima do tema da regionalização com grande à vontade.

Mas será que este caminho feito em círculos, exigindo custos e energia a todos, é apenas resultado da incapacidade do Estado central em abrir mão do poder que desde sempre dispôs? Talvez seja pertinente trazer também para a discussão a realidade pulverizada, mas muito presente, do poder local.

A afirmação do local sempre teve uma expressão muito relevante em Portugal, remetendo mesmo ao tempo anterior à presença romana onde se multiplicavam tribos, aldeias e territórios com singularidades próprias, aprofundadas pelos diversificados contextos físicos regionais. Muitos séculos se passaram entretanto, mas as dificuldades no exercício de um poder verdadeiramente nacional foi sempre esbarrando na fricção que as distâncias impunham entre governo e governados. Não é por acaso que apenas há cerca de uma década se aboliu a figura do governador civil, representante do poder central à escala distrital, com competências para exercer a coordenação dos serviços do Estado aí localizados.

Este desenvolvimento “insular” acabou por resultar na exacerbação dos valores locais e identitários que são hoje um inestimável património nacional (e, nalguns casos, da Humanidade). Todavia, também ajudam a olhar para o poder central não só como uma fonte incontornável de financiamento, mas igualmente de onde chegam orientações políticas e setoriais que, por vezes, são mais castradoras que potenciadoras de desenvolvimento dos quadros regionais.

Esta relação entre o Centralismo e o Municipalismo acabou, em alguns momentos, por ser mediada por determinadas instituições – as comarcas, os corregedores, as capitais de distrito, as CCDR ou as CIM – mas onde, na verdade, todas fazem parte de um ou de outro universo, o que se traduz no seu posicionamento face aos assuntos envolvidos. Dito de outro modo, a regionalização ou a definição de patamares intermédios de administração, desejados por muitos como uma necessidade, acaba por esbarrar na forma de como se poderá vir a exercer, já que inevitavelmente a sua legitimidade exigirá uma cedência efetiva de poder de ambos os níveis.

Como o nível central segue hoje em larga medida o paradigma do Estado mínimo, em resultado da aplicação das políticas de austeridade, a sua disponibilidade para negociar novos modelos de governação territorial é muito maior do que a que se verifica no âmbito local, que continua convictamente a defender que as suas particularidades e a sua legitimidade política não admitem qualquer limitação aos poderes que agora exercem. Mesmo os agrupamentos de municípios como as CIM constituem instrumentos operacionais sobretudo para a gestão de assuntos em que inequivocamente todos ganham, como a mobilidade e a distribuição de fundos comunitários, mas sempre garantindo que o peso de cada município no final acaba por ser respeitado. A competição e o conflito intermunicipal parecem ter mais peso que a lógica da cooperação no momento em que pretende implementar uma lógica à escala supramunicipal.

Mas não se pense que não houve esforços para que tudo mudasse. A cenoura foi, como sempre, o financiamento. Lembremos como exemplo maior a Política de Cidades (2007-2013) – Programa Polis XXI, que estabelecia como um dos seus três objetivos estratégicos “estimular novas formas de “governação”, baseadas numa maior participação dos cidadãos e dos diversos atores urbanos e em mecanismos flexíveis de cooperação entre cidades e entre estas e os espaços envolventes”. A aprendizagem e sensibilização que se pretendia promover a partir dos apoios a projetos concebidos coletivamente, sem exigir configurações espaciais predefinidas ou administrativas, gerou resultados interessantes mas, infelizmente, não muito duradouros quer nas políticas que se sucederam, quer na formação de parcerias locais.

Esta tensão nacional-local e local-local decorre assim de um contexto muito mais complexo do que a simples e estafada referência ao poder dominador do Terreiro do Paço poderia levar a acreditar. Acaba por convergir numa inação que a todos prejudica, desistindo de trazer para a discussão a criação de instituições e modelos que sejam capazes de fazer a urgente mediação entre os dois polos ativos de poder. Tudo isto gera graves problemas de eficiência, mas também de eficácia, no desejado objetivo de construir futuros regionais (e metropolitanos) diferenciados, porém consensualizados e articulados com a ideia estratégica desenhada para o território nacional.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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