Denunciante de eventuais crimes através de leaks?

Não pode restar a ideia há muito instalada de que há leaks bons e leaks maus, nem que alguém é um perigosíssimo hacker ou um beatífico denunciante. A realidade dos factos e o seu tratamento jurídico não se compadecem com tal visão maniqueísta.

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Rui Pinto DR

A propósito dos leaks, tem-se discutido até que ponto a nossa lei já consagra protecção processual ou irresponsabilidade criminal para aqueles que, de modo ilícito, acedem a material probatório que possa ser essencial para a prova de certos factos.

A Lei n.º 83/2017, de 18/8, estabelece medidas de combate ao branqueamento e ao financiamento do terrorismo, transpondo para a nossa ordem jurídica a chamada “4.ª directiva” da UE (a 5.ª já devia ter sido transposta até 10/1/2020, mas, no domínio aqui analisado, apenas assegura mais garantias aos denunciantes).

Apenas e tão-só para as entidades obrigadas aí indicadas se determina a existência de canais de denúncia em que se protegem os denunciantes (whistleblowers), pretendendo-se que quem pertença a uma dada organização, em especial, sociedade comercial, seja incentivado a comunicar a suspeita da prática de ilícitos. Anteriores directivas já o previam.

As instituições financeiras, os notários, os oficiais do registo, as empresas de intermediação imobiliária e os advogados são algumas das entidades obrigadas. Quanto a estes últimos, há complexas questões de compatibilização com o segredo profissional (que já existiam antes) e que terão de passar por regulamentação específica.

Quem é responsável pelo cumprimento das medidas de compliance nas entidades obrigadas tem o dever de denúncia, sob pena de, não o fazendo, cometer um crime. Os demais que o conheçam não são obrigados a fazê-lo, no sentido em que não há sanção penal associada ao incumprimento.

O denunciante tem a garantia de que “as entidades obrigadas [se] abstêm de quaisquer ameaças ou actos hostis e, em particular, de quaisquer práticas laborais desfavoráveis ou discriminatórias contra quem efectue comunicações, não podendo [as mesmas], por si só, servir de fundamento à promoção pela entidade obrigada de qualquer procedimento disciplinar, civil ou criminal relativamente ao autor da comunicação, excepto se as mesmas forem deliberada e manifestamente infundadas”.

O incumprimento deste dever acarreta somente responsabilidade contra-ordenacional, uma vez que o regime de denúncia obrigatória só existe para órgãos de polícia criminal, autoridades judiciárias e para funcionários (art. 386.º do CP) no exercício e por causa das suas funções. Revertendo ao que vem sendo noticiado, Rui Pinto não se encontra em nenhuma das condições de beneficiar deste regime: não é abrangido pela lei citada e não impende sobre ele qualquer dever de denúncia. Mesmo que impendesse, isso não o ilibaria da eventual responsabilidade criminal por que está pronunciado.

Também não é aplicável, no caso, o regime da lei de protecção de testemunhas (Lei n.º 93/99, de 14/7), em que estas últimas são definidas como “qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto, face à lei processual, disponha de informação ou de conhecimento necessários à revelação, percepção ou apreciação de factos que constituam objecto do processo, de cuja utilização resulte um perigo para si ou para outrem”, dado que essas salvaguardas apenas se dirigem a quem não tenha, de qualquer forma, praticado um ilícito relativamente aos alegados crimes de que a testemunha teve conhecimento.

O chamado “direito premial” já existente em diversas normas do CP e em legislação avulsa não se aplica a Rui Pinto. Na verdade, estamos em face de eventual dispensa ou atenuação da pena (uma vezes mesmo obrigatória) para quem “auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a  captura dos responsáveis pela prática dos factos”. Simplesmente, a lei só o garante para quem tenha comparticipado na actividade delituosa, o que não é o caso. Certo é que estas revelações assumidas pelo jovem, se ele for condenado, deverão ser tidas em conta na medida da pena, no sentido de a diminuir.

Isto dito, há uma outra linha argumentativa a explorar: em anterior artigo aqui no PÚBLICO, já assinalei a necessidade de se analisar a possibilidade de valoração probatória não perdendo de vista o princípio da unidade da ordem jurídica. E, para além disto, mesmo no Penal, se o agente exercer um direito, estamos no âmbito de um tipo justificador que elimina a ilicitude do facto. Sem ilicitude não há crime, visto que este é, tecnicamente, a reunião cumulativa de uma conduta humana, típica, ilícita, culposa e punível.

No Football Leaks, quem começou a denunciar alegados esquemas de corrupção entendia que, mesmo descoberta a ilicitude do acesso a tais elementos, estaria no exercício de um direito à liberdade de informação com interesse público, pelo que seria punido. Tudo está em elaborar uma excruciante ponderação de interesses entre os ilícitos anteriores à aquisição do material probatório e as vantagens comunitárias que dele derivaram, sendo certo que não se pode afirmar que num Estado de direito a verdade não vale a todo o custo, para depois, pela janela, passar a admitir que o “interesse público” tudo legitima.

Por outras palavras, e como o STJ já tem decidido, é bem possível que, nessa concordância prática entre direitos, se afaste o “efeito à distância” que já aqui no PÚBLICO descrevi. Tal importa que os desembargadores e conselheiros, em sede de recurso e, antes, os juízes de 1.ª instância e os procuradores são chamados a realizar um equilíbrio sempre discutível e que, por certo, terminará no Tribunal Constitucional.

Figuras como o “colaborador arrependido” ou um novo “denunciante” que possa não ser punido ou merecer uma atenuação especial da pena quando revelar factos essenciais para investigações criminais mexem com a arquitectura basilar da nossa Constituição em sede processual penal. Assim, nunca é boa conselheira a pressa em legislar em cima de casos concretos, pelo que estou muito curioso com a noticiada proposta a apresentar pela ministra da Justiça.

Não pode restar a ideia há muito instalada de que há leaks bons e leaks maus, nem que alguém é um perigosíssimo hacker ou um beatífico denunciante. A realidade dos factos e o seu tratamento jurídico não se compadecem com tal visão maniqueísta.

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