Isabel dos Santos e a tragédia da África

Enquanto os aspirantes a líderes africanos continuarem a pensar que a política é simplesmente um caminho de enriquecimento fácil e rápido, a tragédia do continente continuará.

Eu só podia ver isso lá, em África, neste continente cobiçado que não consegue encontrar o seu caminho. Mas a queda de Isabel dos Santos não me dá dor nem alegria. Isso me dá uma sensação confusa, que está entre a ira e a tristeza. A queda da estrela que o mundo capitalista adorou ontem não deve ser a ocasião para o júbilo de qualquer pessoa sensata que ame a África e que deseje vê-la sair da sua tragédia mantida. Porque, com flagrante hipocrisia, podemos ser, com ela, esta África, um cúmplice hoje e o seu juiz amanhã. E não sou daqueles que pensam que basta com um gesto cosmético, aparentemente benevolente, mascarar os problemas profundos deste continente ou com uma surpreendente explosão de compaixão de jornalistas internacionais que, de repente, como se descobrissem a existência de Angola e o infortúnio do seu povo sacrificado, são transformados em bons samaritanos e anjos da guarda para os salvar. Digamos, com coragem e espanto, que tudo isso é lamentável. Um déjà vu.

Isabel dos Santos é apenas o reflexo desta África que se queria criar e que se mantém, é a árvore que esconde a vasta floresta. E a receita é sempre a mesma: recrutar alguns indivíduos geralmente sem instrução, que ignoram os códigos do mundo em que são lançados, para criar um poder que pode ser manipulado à vontade. Sedentos de poder, estende-se o tapete vermelho para os atrair, até são tratados por “Excelência” ou “Doutor”, exageradamente, especialmente aqueles que não têm diploma, para embriagar e inflamar os seus egos. São indivíduos que conheceram a colonização, que ainda vêem o homem branco com um complexo de inferioridade, de modo que eles têm apenas uma obsessão: medir-se com ele. O branco será então o seu conselheiro de confiança, para lhe mostrar que derrubaram a ordem colonial. É uma forma de desforra.

Esse complexo que o colonizador habilmente instilou neles fê-los perder todo o senso de moderação. Ele cega-os para as armadilhas deste mundo que foi construído contra eles e os seus povos e que funcionou durante séculos contra eles e sem eles. Pensam, no entanto, que 45 ou 60 anos de independências pouco bem-sucedidas são suficientes para o entender sem estudá-lo perigosamente, de modo que perderão as subtilezas do jogo de manipulação, que só muda por método.

Isabel dos Santos nasceu neste mundo e realmente acredita que a sua fortuna é legítima e fruto do seu génio. Também gozou do complexo da mestiçagem bem conservado no seu país. É esse complexo, misturado com a arrogância odiosa, que lhe permite dizer que os seus irmãos são apenas meios-irmãos, uma noção que não existe em África, uma terra com a qual ela se identifica apenas quando é atacada por brancos, como muitos da sua casta. Foi com a mesma arrogância e postura surpreendente que o marido disse que preferia ver o dinheiro de Angola com um negro corrupto do que com um branco neocolonialista. Ele vê uma diferença nisso. A tragédia da África, este continente confiscado por indivíduos criados pelas potências capitalistas e felizes em sacrificar os seus povos, é, portanto, ter uma elite inadequada à sua realidade para criar caminhos de desenvolvimento.

Um déjà vu. Mobutu. Como é que ele chegou ao poder e como acumulou uma fortuna colossal estimada em vários bilhões de dólares? Para onde ela foi? Bokassa. De onde ele veio e onde está a sua fortuna hoje? E Amin Dada, Sani Abacha, Charles Taylor, Yahya Jammeh, Omar Al-Bashir? Vamos parar por aí. Enquanto os aspirantes a líderes africanos continuarem a pensar que a política é simplesmente um caminho de enriquecimento fácil e rápido, a tragédia do continente continuará. E os aspirantes desse tipo ainda são numerosos, infelizmente. Mesmo que uma nova geração, melhor preparada, com um ego de outra forma, pareça apresentar-se com o desejo de fazer algo pelos seus países, para entrar na história com nobreza, o terreno já está bem minado pela sede de poder e pelo dinheiro incentivados por vários lobbies. É por isso que ainda vemos, aqui e ali, que mesmo o mais idiota dos idiotas pensa que pode governar o seu país, porque se veste de fato e fala, quase correctamente, a língua colonial. Só lhe faltará apoios externos para vender o seu país e a sua alma. Um procedimento que vem de longe, da era colonial.

Tendo o colono criado e deixado pessoas que diferenciava umas das outras (pela cor, etnia, nível de língua), após as independências, que chegaram por volta da década de 1960, os dirigentes dos países africanos prorrogaram esse modo de pensar e agir. Em Angola, a classe assimilada que assumiu o poder em 1975 já desprezava "os pretos de pés descalços". Essa casta continuou os reflexos coloniais e não desenvolveu nada que hoje possa provar o seu amor pelo povo. Por exemplo, nunca o educou adequadamente, pois, como em muitos países africanos, é mantendo um povo ignorante que se afirma o seu poder sobre ele. Assim, contentou-se em continuar o regime colonial, em particular partidarizando a ascensão social e desenvolvendo o espírito de “sabes-quem-eu-sou?”.

Enquanto isso, a casta e as suas famílias são educadas e tratadas no exterior. E, de vez em quando, manda formar sumariamente alguns estudantes em países amigos antes de trazê-los de volta para governar um país cujas realidades concretas eles ignoram. O procedimento exclui muitos jovens brilhantes, que se fizeram sozinhos e que são capazes de seguir a marcha deste mundo e frustrar as suas armadilhas. A casta desenvolveu desconfiança, inveja, para não dizer ódio visceral, contra esses jovens que entendem as coisas, que pensam e querem construir uma África viável para os africanos. Ela odeia-os ainda mais porque é o reflexo da sua incompetência e inadequação.

É, no entanto, a geração desses jovens que pode salvar a África, porque entende as meias palavras e reconhece os abraços interessados ​​e os sorrisos traiçoeiros. Cruzo com eles pelo mundo, inclusive em Angola. Mas eles não têm acesso aos caminhos do poder, nem mesmo às responsabilidades básicas da função pública, porque não são bons militantes do Partido e não têm mentores que se preocupem em colocar os interesses do país em primeiro lugar.

Eu próprio nunca fui tão mal tratado na minha vida profissional como quando me entrego de corpo e alma para dar uma contribuição útil ao desenvolvimento do meu país. Primeiro, sempre se quer usar as minhas competências sem pagá-las pelo valor justo. Então, ser-me-á pedido, sempre no último minuto, às vezes nos corredores do local do encontro, para não participar nas reuniões decisivas que sugeri e organizei para as partes, depois de ter construído o projecto de A a Z, o que surpreende inclusive os estrangeiros envolvidos. E quando se chega, duramente, a um acordo, por escrito, o pagamento da factura, fixada ao preço mais baixo, é sempre feito com muita dor, porque a real intenção é dar-me cabo da cabeça para não me pagar. E Angola tem a reputação de ser um bom pagador, mas sempre tratará um estrangeiro menos competente melhor do que um angolano reconhecido na sua área. E isso, inexoravelmente, deteriora as relações de maneira duradoura, e usa-se depois a situação para difamar, excluir e até prejudicar o angolano envolvido. E o meu caso não é único.

A solução, portanto, é criar uma classe de governantes justos, servidores e não rentistas que trocam favores às custas do povo. Caso contrário, sempre será o país que perderá e os filhos desta casta serão perpetuados no poder com as mesmas besteiras e a mesma arrogância que ainda comprometerão o futuro de mais uma geração.

O Presidente João Lourenço, que demonstrou um desejo real de mudar as coisas, tem muito trabalho a fazer. O poder isola, em todos os lugares, como sabemos. Mas em Angola, em particular, o cordão que é criado ao redor do “chefe" serve acima de tudo para o manipular e o afastar das realidades que ele deve dominar. Foi isso que agravou a loucura de José Eduardo dos Santos e que já está a ser criado em torno do novo Presidente. Evitar que as mesmas causas produzam os mesmos efeitos é, portanto, o maior desafio para João Lourenço.

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