A crise de legitimidade da República Islâmica no Irão

1. É um impulso clássico de sobrevivência dos governos autoritários. As verdades trágicas para a sua própria população, que contrariam a imagem oficial do país e do mundo, são escondidas até não poder mais. Foi assim com a União Soviética no desastre nuclear de Chernobyl, em 1986, na Ucrânia, que nessa altura era uma das repúblicas soviéticas. Foi pela informação publicada na imprensa ocidental que se tornou impossível aos soviéticos manterem que nada se passava de grave em Chernobyl. Claro que a tentação do encobrimento e mentira não é um exclusivo dos governos autoritários. As democracias ocidentais também o fazem, como ocorreu, por exemplo, nos EUA durante a guerra do Vietname. Mas, apesar de tudo, há uma diferença fundamental. Nas democracias liberais existem contrapoderes num sistema político que é plural, tal como a sociedade civil. É possível contestar as narrativas oficiais. Foi possível pressionar Richard Nixon a demitir-se no caso Watergate. É possível hoje contestar na imprensa, nas ruas e no Parlamento — onde está em curso um processo de impeachment — um Presidente tão problemático como Donald Trump.

2. Estará a República Islâmica do Irão a viver o seu ‘momento Chernobyl’, não obviamente no sentido de ter ocorrido um desastre nuclear no seu território — nesta altura nem sequer dispõe de centrais nucleares, embora as ambicione ter —, mas de negar acontecimentos profundamente trágicos à sua própria população? E a população, apercebendo-se da mentira ostensiva e da inépcia do seu Governo, está agora direccionar a sua raiva contra este, pondo em causa seriamente a sua legitimidade?

A 8 de Janeiro, o voo 752 das Linhas Aéreas Ucranianas (PS752) foi abatido por engano por mísseis iranianos, quando levantava voo do aeroporto de Teerão, matando todos os 167 passageiros e os nove tripulantes a bordo. O contexto foi o das tensões com os EUA, subsequentes à morte, a 3 de Janeiro, do general Qassem Soleimani da Guarda Revolucionária do Irão — e do seu aliado iraquiano, Abu Mahdi Al Muhandis. Foram ambos mortos no aeroporto de Bagdad por um ataque norte-americano. Nessa mesma madrugada fatídica de 8 de Janeiro o Irão tinha disparado, como represália, vários mísseis contra bases norte-americanas no Iraque.

3. Infelizmente não é nada incomum que os aviões civis e os seus tripulantes e passageiros sejam ‘danos colaterais’ de conflitos bélicos. Nas últimas décadas vários foram destruídos por engano, usualmente devido ao elevado grau de tensão gerado pelas situações de guerra e a erros humanos dos beligerantes. Os casos ocorrem tipicamente quando a aviação civil sobrevoa territórios nas proximidades desses conflitos, sendo confundidos com aviões militares.

Um dos casos mais trágicos ocorreu em 1988 quando, contexto da guerra dos petroleiros, um avião civil iraniano foi abatido pelo USS Vincennes da marinha de guerra norte-americana, que patrulhava o Estreito de Ormuz para manter a rota marítima aberta. Mais recentemente, em 2014, um avião das Linhas Aéreas da Malásia foi também destruído, quando sobrevoava o Leste da Ucrânia, um terreno de combate entre o exército ucraniano e os separatistas pró-russos. Apesar de a investigação internacional apontar para um envolvimento da Rússia, esta continua a negar qualquer responsabilidade no sucedido, considerando que está a ser injustamente acusada.

4. O que torna o caso do voo PS752 das Linhas Aéreas Ucranianas diferente não é só o facto de o Irão ter assumido a responsabilidade do erro — o que, em si mesmo, é uma acto positivo da parte do Governo iraniano. (Todavia, importa lembrar, foram as provas de imagens por satélite, vídeos e outras que apareceram na imprensa ocidental que, provavelmente, acabaram por levar o Irão a desdizer a tese inicial de que isso seria propaganda anti-iraniana.) Ao contrário de outros casos, a grande maioria dos passageiros do voo PS752 eram cidadãos iranianos, ou iranianos da diáspora, como no caso o caso da generalidade dos passageiros de nacionalidade canadiana, tendo muitos dupla nacionalidade. A consequência foi que a destruição, por erro humano, do avião civil, custou a vida esmagadoramente aos próprios iranianos.

Esta sucessão de acontecimentos é notoriamente má para o Governo iraniano. Em finais de 2019, em Novembro e Dezembro, enfrentou fortes protestos da sua população devido à deterioração das condições económicas em geral e ao aumento dos preço dos combustíveis em particular. A reacção governamental foi uma repressão violenta dos manifestantes com detenções em massa e várias centenas do mortos.

Nos últimos tempos, tudo parece correr mal para o Governo do Irão. Anteriormente, a 7 de Janeiro, nas cerimónias fúnebres de Qassem Soleimani mais de 50 pessoas morreram esmagadas pela multidão. Num outro plano muito importante, agora o do acordo nuclear de 2015, são os europeus a accionar o mecanismo de disputa previsto no acordo, considerando que o Irão o terá violado. Se o Irão tinha a intenção de se manter no mesmo — e manter os europeus — para evadir as sanções económicas dos EUA, o anúncio de não se considerar vinculado pelos limites de enriquecimento de urânio pode ter aberto o caminho ao seu fim. São más notícias para o Irão. Afinal, era mesmo esse resultado que Donald Trump pretendia quando unilateralmente se retirou do acordo nuclear.

5. Este início de annus horribilis afecta a legitimidade República islâmica, mas não significa o fim próximo do regime iraniano e menos ainda uma qualquer ténue abertura à democracia liberal (nem uma perda automática da influência iraniana no exterior). No Médio Oriente, as opções políticas reais que se abrem à população são escassas e oscilam, a maioria das vezes, entre dois autoritarismos.

Assim, ou ‘escolhem’ autoritarismos seculares, ou ‘escolhem’ autoritarismo religiosos — frequentemente não escolhem nada, estes chegam ao poder pela força, ou no meio de tumultos sociais e políticos, e legitimam-se a si próprios. A Revolução Iraniana de 1978/1979 mostrou o que é passar de um mal para outro. A ‘Primavera Árabe” de 2011 também: autocratas seculares e militaristas ou islamistas radicais disfarçados de democratas.

Para além das ilusões ocidentais, essas eram, na prática, quase todas as escolhas possíveis de poder. Entre as teocracias opressoras, sejam sunitas ou xiitas, e os secularismos autoritários, raramente a democracia liberal secular tem alguma hipótese. O Irão já experimentou as duas versões de autoritarismo(s). Primeiro, com o Xá Reza Pahlavi, numa secularização e modernização forçada, onde o elemento persa se sobrepunha ao islâmico. Depois, numa vingança dos clérigos xiitas, com uma teocracia chefiada pelo ayatollah Ruhollah Khomeini. Os iranianos também já souberam o que era serem perseguidos pela SAVAK (a polícia política secreta dos tempos do Xá). Agora sabem o que é serem perseguidos pelos Guardas da Revolução (quando se manifestam contra os governantes), ou pela polícia dos costumes e da boa moral islâmica. Veremos onde levará esta nova onda de contestação à teocracia iraniana e quais as suas repercussões dentro do Irão e e no mundo exterior.

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