A sagrada liberdade de expressão

Do Charlie Hebdo à sede do Porta dos Fundos, a liberdade de imprensa ou o humor livre são condições para a liberdade de todos nós.

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No início da semana, a sede do grupo humorístico Porta dos Fundos foi atacada com cocktails molotov. Apesar do início de incêndio, felizmente não há vítimas a registar, seja no interior do edifício ou na rua. A ferida que esta agressão deixou à vista foi a do ataque à liberdade de expressão, a tentativa de assustar e silenciar estes humoristas.

O Porta dos Fundos é um coletivo humorístico brasileiro mundialmente reconhecido, tendo ganho recentemente um Emmy Internacional na categoria de “Melhor Comédia”. No último mês tornou-se o centro do debate público brasileiro devido a um dos seus vídeos, “A primeira tentação de Cristo”, que começou a ser exibido a 3 de dezembro pelo serviço de streaming Netflix. Esta rábula humorística mostra Jesus na festa dos seus 30 anos (ou seja, prestes a iniciar sua vida pública), onde é confrontado com a informação que foi adotado e que José não é o seu pai biológico verdadeiro. O ponto mais polémico é a representação de Jesus como homossexual, pois leva um namorado para a festa.

O debate em curso é o que vai às fundações do nosso modelo de sociedade: a liberdade de expressão e uma das suas variantes, se o humor deve ter ou não limites. O ataque com cocktails molotov é apenas o último e o mais violento dos acontecimentos, mas a lista das ameaças já vinha longa: um conjunto de deputados brasileiros convocou a Netflix para se apresentar na Câmara dos Deputados sob a acusação de vilipêndio e afronta aos mandamentos constitucionais, foi criada uma petição que já conta com mais de 2 milhões de assinaturas contra a exibição do episódio, foi promovida uma campanha de boicote à Netflix e até Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, afirmou que a “Netflix ataca cristãos”.

A discussão não é sobre bom gosto, sobre as escolhas artísticas do Porta dos Fundos, a qualidade do argumento ou o desempenho dos atores. Se assim fosse, a conclusão era a mais simples de todas “só vê quem quer”, algo que é ainda mais verdadeiro quando estamos a falar de vídeos de uma plataforma de streaming que exige uma assinatura paga para aceder aos conteúdos. E sobre o poder de encaixe exigível a crentes, sou até menos rigoroso do que o novel Cardeal Tolentino de Mendonça que reconheceu que “Deus tem sentido de humor, ao contrário dos crentes, muitas vezes”.

A discussão é sobre censura e a sua aceitação em pleno século XXI. É sobre as mentes conservadoras considerarem que quando o tema é religião, há limites à liberdade de expressão. Isso é inaceitável e tem um nome: intolerância. E se já a condenamos em tantos outros momentos, como quando aconteceu o ataque ao Charlie Hebdo, porque se deve agora pensar diferente?

E não tem a ver com concordarmos com o Porta dos Fundos (como não o era se concordávamos com os cartunistas do Charlie Hebdo). Até podemos discordar e isso não diminui em nada a nossa opinião. Aquela frase mal atribuída a Voltaire resume tudo: “Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito a dizê-lo”. É isso o que eu penso. E se sabemos que essa defesa intransigente tem a responsabilidade de excluir posturas ofensivas à dignidade humana, como por exemplo o racismo, admitir limites ao humor é colocar em causa um dos pilares da liberdade de expressão.

Quase 30 anos depois de Sousa Lara censurar Saramago ou de Herman José ter sofrido na pele a intolerância para com a sua “Última Ceia”, é com tristeza que se constata que a década agora chega ao fim ficou marcada pelos fantasmas que atacam a liberdade de expressão. Do Charlie Hebdo à sede do Porta dos Fundos, a liberdade de imprensa ou o humor livre são condições para a liberdade de todos nós.

Face aos acontecimentos, a resposta dos humoristas merece toda a solidariedade. “Não nos vamos calar! Nunca”, afirmou o fundador do grupo Fabio Porchat. E sobre a violência, Gregório Duvivier foi taxativo: “Não temo a violência porque o que eles querem é o medo”. Exemplos da esperança e da persistência que todos temos de construir. O medo e a intolerância não vencerão. Somos todos Porta dos Fundos!

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