Uma viagem com José Mário Branco à nobre poesia popular de Peroguarda

Da poesia popular de Peroguarda, dois nomes sobressaíram do anonimato: António Joaquim Lança e Virgínia Dias, que aos 84 anos vê editados em livro os seus poemas.

Não foi no Natal, foi na Páscoa. Adolescentes aproveitavam as férias escolares para rumar a Sul, em viagens de estudo, na senda de um caminho aberto por António Reis (1927-1991), cineasta e poeta. E que Sul era esse? Peroguarda, aldeia alentejana que nas décadas de 1950-60 ainda se aproximava dos 1000 habitantes e no último censo (de 2011) já tinha apenas 364, quase tantos quantos dias tem um ano. Viajavam, nesses grupos, Alexandre Alves Costa e a sua irmã Isabel Alves Costa, Luís Ferreira Alves, Jorge Constante Pereira e José Mário Branco, entre outros. Isto mesmo antes de o etnólogo corso Michel Giacometti chegar àquela aldeia (em 1965, quando ali fez as primeiras recolhas e gravações) e criar com ela laços que o levaram a ficar lá sepultado.

Além dos cantos ancestrais que apaixonaram Giacometti, Peroguarda tinha um outro segredo: a poesia. E nesta, dois nomes sobressaíram do anonimato: António Joaquim Lança e Virgínia Dias. Do primeiro, de que António Reis gravou uma fita com vários poemas cujo rasto se perdeu, veio José Mário Branco a gravar o extraordinário poema A morte nunca existiu (no disco Margem de Certa Maneira, 1972), regravando-o em Ser Solidário (1982) e no disco Ao Vivo em 1997. Da segunda, hoje com 84 anos, acaba de ser lançado o livro Como Um Pedaço de Terra Virgem (ed. Boca) que colige a sua poesia e inclui um disco onde ela diz alguns poemas e também canta.

“Peroguarda é uma das recordações mais indeléveis da minha vida”, escreve José Mário Branco no prefácio do livro de Virgínia Dias, editado em Novembro, o mesmo mês em que ele nos deixou, aos 77 anos. “Nesses dias eu ouvia, ouvia, ouvia – as conversas, os cantos, a poesia natural, rústica e dura daquelas vidas.” Foi ali que ouviu, por exemplo, “o passo arrastado e pendular dos homens cantando de regresso a casa, ao fim da tarde” (passos que ele viria depois a reproduzir, em Paris, na gravação de Grândola, vila morena, de José Afonso); o “som dos bichos e das aves”, nos campos; e, “à beira da estrada, os versos nunca passados a texto de um velho pastor alto e magro, sentado numa pedra com a mão direita no cajado, António Joaquim Lança, que me deu a primeira e mais importante lição de filosofia da minha vida: ‘Tudo o que for vivente tem/ uma queixa que o percorre/ e quando um dia a vida morre/ a morte morre também’. […] E Lança olhava para nós com aquele olhar longe e demorado, como que a passar-nos um recado dos deuses.”

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Virgínia Dias num dos vídeos onde surge a ler poemas seus CANAL POESIA

Já Virgínia lhe surgiu mais tarde, numa visita em 1961. Um jovem casal convidou José Mário e a namorada para um jantar em sua casa e esse casal eram Virgínia Dias e o seu marido Agostinho Pereira. Muitos anos depois, a fechar o prefácio, escreveu: “Ao ler estes poemas da Virgínia encontrei neles a alma e o corpo de Peroguarda, de todo o Baixo Alentejo e de todo o universo que dali vislumbrei.” Virgínia, que escreve poesia desde a infância, mas envergonhava-se de dizer que a escrevera (foi o marido, um dia, que lhe descobriu os poemas numa gaveta), teve antes do livro projecção através do cinema: o realizador Pierre‑Marie Goulet filmou-a na trilogia Polifonias (1997), Encontros (2006) e Além das Pontes (2016). E há vários vídeos dela a dizer os seus próprios poemas no Canal Poesia do YouTube.

Mas é no livro que a poesia de Virgínia Dias melhor se explica, à leitura de cada um. Recolhida primeiro por Paulo Lima e depois por Marta Ramos, que deram forma escrita a uma arte nascida de criação oral (já que Virgínia, que fez a quarta classe, começou a criar poemas antes de saber escrever), esta é uma poesia nascida da terra, mas profunda e inteligentemente elaborada.

Mesmo a mais antiga, como esta, escrita na lousa da escola e dedicada à professora que a maltratava: “Senhora Dona Isabel/ Não têm culpa minhas mãos/ Da senhora não ter quem queira/ Morar em seu coração// Mas se a senhora tem mágoas/ Que a consomem de desgosto/ Não são lenço de limpar lágrimas/ As minhas mãos e o meu rosto.” Compôs décimas com mote (um de António Aleixo, Um homem sonha acordado), celebrou e sofreu na poesia a vida, o campo, despedidas (Giacometti, Lança, Zeca Afonso) ou a dor das palavras que se sentem. “Sofres camponesa?/ Bem feito!/Não tinhas direito a alma/ Puseste uma no peito.// E estranha mistura: esta!/ O peito todo alma/ Tudo o mais besta!/ Ah! Mas a besta também chora./ Céus! Que dor/ O não saber dar à alma/ O poema libertador” (em As palavras são como cristal).

Poesia saída de mãos que guardam “um cheiro antigo/ De terra, sol e trigo”, e que não esquece agruras de tempos duros: “Se o trabalho dá riqueza,/ Mãe, porque temos nós frio e fome?...” Não foi no Natal, foi na Páscoa, já se disse. Mas o Natal ecoa neste livro, nos ciclos da terra e da vida. Ouçam-no.

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