Trabalho de preto

Há-os cada vez mais. Inquietos porque a negritude tem mais visibilidade e voz. Desconcertados porque as velhas narrativas colonialistas e esclavagistas são postas em causa. Por vezes paternalistas com as razões igualitárias das mulheres. Contorcendo-se quando confrontados com direitos LGBTQ+. E quando se fala de crise ambiental, a partir de um ângulo crítico do capitalismo, acham que toda a gente é apocalíptica.

São maioritariamente de direita, mas também os há à esquerda. São antigos e novos defensores da velha cultura colonial, patriarcal e neoliberal. Alguns conscientemente. Outros não porque nunca questionaram algo que interiorizaram desde sempre. Agora são obrigados a confrontar-se. E estão confusos. O seu comportamento é sintoma de que estamos a viver um momento de reposicionamentos. Há dias, na Gulbenkian, o ex-futebolista e pedagogo do racismo, o francês Lilian Thuram, falava disso. No tempo dos nossos avós havia mais racismo do que hoje, mas na actualidade há uma onda reactiva que perturba as relações sociais, por essa maior visibilidade e representatividade das identidades vistas por alguns como subalternas.

Criam-se novas conflitualidades? Sim. Há paradoxos, diferentes correntes e excessos em todas estas lógicas anti-racistas, feministas, ambientalistas ou de justiça social? Inevitavelmente. É de transformação que falamos e de hierarquias de dominação que durante anos foram interiorizadas sem serem contestadas. Quem até aqui as dava como adquiridas sente-se incomodado. Veja-se estes dias. Uma deputada, Joacine Katar Moreira, revela falta de preparação e, ela e um partido, o Livre, expõem de forma inábil divisões. E o que sucede? Há críticas, justas, à barafunda política. Mas a reboque delas, o que se entrevê em muitos casos, são invectivas moralistas, comportamentais, culturais. Racismo.

Um racismo nunca reconhecido porque naturalizado. E que facilmente é aproveitado por populismos. Num tempo em que os modelos económicos revelam debilidades, onde o crescimento económico é mais quimera do que realidade, as atenções são desviadas. Estigmatiza-se alguns grupos para reforçar uma identidade nunca nomeada. São sempre os outros (“os de cor”) os designados, com o propósito de reavivar estruturas de privilégio que não se expõem, nem sequer se vêem, como identidades.

Dessa forma legitima-se um discurso estigmatizador e reforçam-se categorias de dominação. O grande desafio, para quem defende uma outra visão da realidade, é mostrar que todas estas lógicas estão ligadas, enraizadas num mesmo sistema socioeconómico e político em erosão. É isso que pode articular a procura de maior justiça social, a luta contras as desigualdades ou as lutas feministas, anti-racistas ou ambientalistas.

O racismo é muito mais do que um problema de pele. Está ancorado no sistema socioeconómico e político. Isso mesmo é reflectido neste momento, em Lisboa, no espaço Hangar, numa exposição do artista luso-angolano Nástio Mosquito. Não há respostas, mas inquietudes. “Toda a finança canta o trabalho de preto / Mas toda a Europa chora o trabalho de preto”, canta o músico B Fachada, na canção-título da exposição (Trabalho de Preto), confrontando-nos com as conotações de uma expressão racista e esclavagista, ao mesmo tempo que nos faz pensar como tantos de nós (brancos precários, trabalhadores remediados, mulheres discriminadas ou imigrantes deixados à sua sorte) apesar das experiências muito diferentes, vivemos sobre os mesmos esquemas.

Hoje existe quem teorize sobre aquilo que se caracteriza como a “negrificação do mundo” — Thuram nomeou isso na Gulbenkian — e a planetarização dessa condição que extravasa identidades biológicas ou sociológicas. Ou seja, sejamos negros ou não o sistema económico trata-nos a todos como negros. Talvez valha a pena pensar e agir sobre isso.

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