Sonhos persas, melancolia iraniana

Desde o ciclo eleitoral de 2017, se atentarmos aos resultados das eleições autárquicas, que se generalizou a todo o país um sentimento de repulsa e contestação antirregime. Algo inédito, quando tradicionalmente a oposição política se concentrava na juventude urbana afluente de Teerão e entre os dissidentes do regime.

Ao fim de 40 anos de teocracia islâmica, o regime de Teerão assiste, de acordo com o número de mortos veiculados através do opaco espectro informativo do Irão, provavelmente, às suas mais violentas e sangrentas manifestações de protesto popular antirregime. Nos últimos anos o país presenciou várias sublevações populares, catalisadas por diversas razões e circunstâncias, tendo todas como objetivo último não confesso, provocar a mudança de regime, a caminho da democracia liberal.

Como fica claro, tal nunca sucedeu, ou ainda pior, nem sequer esteve perto de suceder. O aumento do preço dos ovos no final de 2017, início de 2018, inflamou protestos durante uma semana em mais de 40 cidades iranianas. Na província do Cuzistão, dominada pela população de origem árabe, os protestos contra a precariedade no fornecimento de serviços básicos, como água e luz, são recorrentes. Nas províncias de Kermansha e do Curdistão, a população curda rebela-se ciclicamente contra as condições de degredo social que lhes são impostas pelo governo central. No Azerbaijão Oeste as manifestações contra as injustiças sofridas pela população azeri também são recorrentes. Até a população qashqai, nómadas de origem turca, importunam o regime e são alvo da repressão daí decorrente.

Outros exemplos, haveria a apontar, de focos de descontentamento sociopolítico, tendo todos em comum, as depauperadas condições de vida a que a maioria da população iraniana está sujeita, em particular as minorias étnicas não-persas (cerca de 45% dos cerca de 82 milhões de habitantes). Estas condições foram agravadas, ao longo do último ano, pela retirada unilateral dos EUA do acordo nuclear e consequente reposição de sanções económicas severas, cujos efeitos se começam a fazer sentir de forma veemente, perpassando toda a sociedade e conduzindo ao despedaçar da frágil classe média. 

A reação do regime à insatisfação popular segue um roteiro consolidado, culpando as “interferências externas” na política nacional e mobilizando a resposta repressiva através do destacamento imediato nas ruas das melícias Basij (ramo paramilitar da Guarda Revolucionária Islâmica). Tais métodos têm sido suficientes para intimidar a população, contornar as reivindicações etno-nacionalistas e sufocar as aspirações políticas da juventude sedenta de liberdade e mudança (cerca de 40% dos iranianos tem menos de 25 anos). Jornalistas, advogados, defensores dos direitos humanos e opositores ao regime são detidos seletivamente, sempre que conveniente, evitando-se o surgimento de eventuais caciques entre as massas revoltosas (desde 2011 que os três líderes do Movimento Verde se encontram em prisão domiciliária).

Desde o ciclo eleitoral de 2017, se atentarmos aos resultados das eleições autárquicas, que se generalizou a todo o país um sentimento de repulsa e contestação antirregime. Algo inédito, quando tradicionalmente a oposição política se concentrava na juventude urbana afluente de Teerão e entre os dissidentes do regime. Só assim se entende que a atual revolta popular tenha atingido mais de 100 cidades do país e tenha sido alvo de uma contenção ultraviolenta, a qual termina normalmente em manifestações pró-regime coreografadas.

A maioria destes protestos são não violentos, pois é perceção geral que o povo iraniano pretende uma transição pacífica do regime teocrático para a democracia, rejeitando as consequências incertas de uma nova revolução. Todavia, a elite religiosa e militar aos comandos da república islâmica mostra-se coesa e resistente às pressões oriundas do interior da nação. Como estratagema de manutenção no poder promete reformas político-económicas, numa espécie de simulacro democrático (habitualmente protagonizado pelos sectores centristas do regime em torno do Presidente Rouhani), que vão gerando expectativas infundadas entre a sociedade sobre um futuro melhor, mas que permitem ao regime criar uma folga ideológica de “esperar para ver”, e estabelecer um clima social de resignação.

A palpitação da espera pela mudança de regime é mais acelerada em Washington, Tele Avive (isto é, Jerusalém Ocidental) e Riade. A Administração Trump iniciou o seu mandato colocando o Irão “sob aviso” e prometendo a saída unilateral do acordo nuclear. Trump recuperou a política do “mad mullah” dos anos 1980 e apresentava-se decidido a forçar a mudança de regime.  Contudo, os últimos acontecimentos no Irão não suscitaram a atenção de Trump (poderia até ter vindo reclamar “vitória”, pois o que esta à acontecer no Irão pode ser interpretado como resultado indireto da reposição das sanções norte-americanas). Tudo indica que nem Estados-Unidos, nem os seus aliados na região do Médio Oriente, estão convictos das medidas que devem adotar para que possam contribuir para o derrube do regime iraniano.

A preponderância do Irão na sua esfera de influência regional, através da consolidação do seu “eixo de resistência”, no Iraque, Síria, Líbano e Iémen, só recentemente começou a ser contestada e desafiada por setores anti iranianos das populações locais. Desde a proclamação do “Califado” em 2014, que o Irão tem utilizado todas as oportunidades para restabelecer laços entre as elites regionais e rearmar os seus aliados paramilitares tradicionais, sendo que esta estratégia tem obtido sucesso, como demonstram os telegramas secretos, recentemente tornados públicos, sobre a atuação da unidade de elite militar iraniana no Iraque (Força al-Quds). Contudo, esta estratégia tem custos económico-financeiros enormes para Teerão, os quais também têm contribuído para o agravamento da situação socioeconómica do país e para o descontentamento popular face às aventuras do regime na exportação da revolução islâmica xiita.

A teocracia islâmica personificada pelo Guia Supremo sobrevive encurralada, entre o descontentamento interno e as pressões externas, todavia terá intuído que este é o seu modo de vida tendo-se adequada singularmente as estas condições geopolíticas. O regime sofre contusões que rapidamente são sanadas, denotando um grau de resiliência espantoso.

No Irão existe um ritual sociocultural peculiar, designado de tãrof, que é uma espécie de deferência social extrema, a qual, aos olhos de um observador externo, parece gerar uma convivência paradoxal, stressante e de impasse, mas com que os iranianos são exímios a lidar. O Irão vive num tãrof político e ninguém aparenta saber, ou ter vontade, de o desfazer e avançar. Tudo indica que tenhamos de aguardar pela mudança de Guia Supremo para que haja um desenlace sobre o futuro de mais um regime sui generis na política mundial.

Professor Auxiliar Convidado do Departamento de Relações Internacionais e Administração Publica da Universidade do Minho

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